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A mostrar mensagens de janeiro, 2024

Sob a Água Negra (2016)

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Não sou grande fã de leituras fantásticas, mas admito que Mariana Enriquez é bastante particular no domínio, pelo modo como consegue criar cenários e atmosferas profundamente realistas, mantendo a linha entre o possível e impossível muito próximas. Neste conto, “Bajo el Agua Negra” (2016), Enriquez partiu da história real de Ezequiel Demonty , um adolescente de 19 anos de um bairro pobre de Buenos Aires, que foi obrigado pela polícia a saltar para um rio, apesar de ter dito que não sabia nadar. Sob ameaça das armas dos polícias, foi obrigado a nadar até à outra margem, tendo acabado por se afogar. O corpo seria encontrado uma semana depois. Os eventos ocorreram em 2002, passados 2 anos, nove polícias seriam condenados com penas a variar de perpétua a 3 anos. Enriquez não dramatiza o que se passou, mas antes caracteriza e estrutura o mundo em que viviam aqueles adolescentes, permitindo-se depois especular sobre a moral dos comportamenteos e sua representação. Pranchas criadas por Lucas

Sete Andares (1937)

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"Sete Andares" é um conto de Dino Buzzati, mais conhecido por "O Deserto dos Tártaros" (1940) , escrito em 1937, colado ainda ao tempo dos sanatórios (hospitais de repouso e recuperação). Neste caso, o sanatório apresenta sete andares, sendo que à chegada é explicado ao protagonista que os andares estão organizados por ordem de gravidade do estado do doente. No topo, sétimo andar, os menos doentes, quase não doentes, no primeiro andar, os que já quase não têm salvação. O brilho do conto assenta na descrição das percepções que o ser humano cria sobre a doença, e em particular sobre o modo como o facto de lhe ser atribuído um rótulo de gravidade é suficiente para transformar totalmente todo o sentimento de si. Apesar de profundamente psicológico, o facto de Buzzati ter criado um espaço concreto e uma hierarquia desse espaço cria uma metáfora plena dos estados interiores quase impossíveis de materializar em palavras. Curto, profundo e brilhante. Visualização, em banda

Anatomia de um casal

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“Anatomie d'une Chute" (Anatomy of a Fall / Anatomia de uma Queda) (2023), de Justine Triet, é um filme de grande intensidade psicológica, com um trabalho de direção, escrita e performance capaz de o colocar ao nível da literatura mais erudita. Somos envolvidos numa trama de um processo de investigação sobre a queda de um marido, do alto de uma janela, que se nos oferece com duas possibilidades de resposta: suicídio ou assassinato pela esposa. Contudo, essa trama interessa apenas à superfície, já que aquilo que está verdadeiramente em análise é o casamento entre dois escritores e um filho (11) que perdeu a visão num acidente. Ao longo de duas horas tentamos descobrir, por entre um novelo de suspeitas e possibilidades, o que terá acontecido, mas enquanto o fazemos aprofundamos o nosso conhecimento do casal e das personalidades de cada um. A obra apresenta um trabalho impressionante com um guião marcado por descrições minimalistas entrecortadas por diálogos profundos a rasar a m

Quando um autor mente

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Há muito tempo que não me deixava apanhar por discursos pseudo-intelectuais, muito usuais em certos meandros artísticos, mas desta vez não tive escapatória, tive de ler um ensaio de análise de um livro escrito pelo próprio autor para tentar compreender a origem e significado do livro que estava a ler. Falo do livro “O Pássaro Pintado” (1965) de Jerzy Kosiński, e do posfácio, publicado na edição da Ulisseia, que é uma tradução do texto escrito pelo autor para a edição alemã de 1966. “O Pássaro Pintado” tem fãs por todo o lado, do Goodreads a nomes como Elie Wiesel ou à lista dos 100 Melhores Romances de Sempre da TIME (2005). Contudo, quando há uns dois anos consegui arranjar uma cópia para o ler encontrei vários textos que atacavam o livro e o autor por ter sido apresentado como autobiografia, a ponto de receber o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro (1966) em França na categoria de Ensaio, quando na verdade não era. Poucos anos depois de lançado, e fruto da investigação de alguns jornal

"Caderno Proibido" de Alba Céspedes

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Depois de Elena Ferrante ter dito que Alba Céspedes tinha sido uma das suas maiores influências, foi a vez de Annie Ernaux, Nobel 2022, dizer: "Ler Alba de Céspedes foi, para mim, como entrar num universo desconhecido". A influência em Ferrante é por demais evidente, já sobre o universo desconhecido diria não e sim. Em "Caderno Proibido" (1957) Céspedes fala-nos de uma mulher de 43 anos, casada, mãe de dois filhos, classe-média, que vive numa Itália do pós-guerra, 1950, e que decide comprar um diário para pela primeira vez começar a exprimir os seus pensamentos, sentimentos e desejos. Ou seja, tematicamente, nada de mais próximo, comum e aparentemente acessível. Contudo, a forma como Céspedes representa a realidade da visão interior de Valeria apresenta uma magnitude de aprofundamento psico-social como nunca antes vimos. "O Caderno Proibido" abre com a singela frase — "Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para

“Scavengers Reign”, a estranheza da criatividade

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“Scavengers Reign” (2023), numa tradução livre, O Reino dos Necrófagos , é uma série, simultaneamente, estranha, criativa, excêntrica, adorável, bizarra e tranquila. Perdidos num outro planeta, como numa ilha isolada, somos confrontados com toda uma outra biologia, fortemente evolucionária, simbiótica e sistémica que assusta ao mesmo tempo que vai sendo reconhecível e nos reconforta. A atmosfera, criada pela dupla Joseph Bennett e Charles Huettner, entra no género da chamada Weird Fiction , mais concretamente no domínio da Weird Biology , fugindo do clássico horror (H. P. Lovecraft) para adotar uma visão mais exótica, que mescla o desconforto do novo e diferente com a calma e curiosidade da inquisição e descoberta, um pouco mais na linha do trabalho de Jeff VanderMeer, mais conhecido pela trilogia “The Southern Reach”, com o primeiro livro, “Annihilation” (2014), adaptado ao cinema (2018) por Alex Garland. Várias versões do poster da série criadas por  Charles Huettner “Scavengers Rei

Umberto Eco: Uma Biblioteca do Mundo (2023)

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È meravigliosa. La biblioteca di Eco è un breve viaggio nel suo mondo e nelle sue idee. Decine di interviste intervallate da immagini della sua biblioteca e di una dozzina di altre biblioteche internazionali. Conosciamo un po' meglio la personalità di Eco, in particolare le sue passioni. Un antipasto per continuare a leggere i suoi scritti e i suoi libri. "I’m going to tell you something that happened when my daughter was 3. She was watching tv and they were saying... a certain cake was the best in the world.   I told her: “Don’t believe what they say on tv. It’s just an advertisement..”  Then the news came up and they announced: “Big snowfall in Torino”... So she looked at me and smiled: “Not true, is it?” “No” I replied “When it’s the news, the TV says the truth”. Then they interviewed a minister who bragged about his job... She goes: “It’s true, right?”  “No” I say... “When a minister talks on the news he may not tell the truth...”" "I am a semiologist, I study la

Refúgio no Tempo de Georgi Gospodinov

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Este livro não poderia ter surgido numa altura mais apropriada, já que trata de um assunto no qual tenho vindo a trabalhar com um aluno de doutoramento, o tratamento da demência por via da “terapia de reminiscência” que se baseia no uso de artefactos de média, no nosso caso a realidade virtual, para melhorar o bem-estar de pacientes. Gospodinov ficciona um mundo no qual é oferecido às pessoas a possibilidade de viverem na década, ou ano, que melhor lhes convir, levando assim a estratégia ao extremo, em vez de alguns conteúdos de média, quartos decorados, casas recuperadas, ou pequenas aldeias de retiro, sobe-se ao nível das nações, de toda a Europa. Com essa permissa coloca em jogo toda uma discussão sobre o enorme xadrez político vivido durante as décadas de 1930 a 1990 nas diferentes regiões europeias. Para que década quereríamos voltar se a opção nos fosse oferecida? O que ganharíamos? O que perderíamos? De que adiantaria? Vivemos do que está por vir, ou daquilo que já passou? Gospo

Alan Wake II (2023)

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“Alan Wake II” foi nomeado para oito categorias do Game Awards 2023, ganhou três: Best Game Direction; Best Narrative; Best Art Direction . Podia ter ganho o Game of the Year, mas esse foi para “Baldur’s Gate 3” , ainda assim a revista Time não deixou de lhe atribuir o título . Para mim, não é apenas jogo do ano, será um dos jogos desta década. Se a narrativa ganha toda a proeminência merecida num jogo em que a personagem principal é um escritor, aquilo que torna “Alan Wake II” extraordinário é a sua direção. Estamos perante um artefacto que combina, na perfeição, cinema, vídeo, animação, rádio, literatura, ilustração, entre outras formas de expressão, criando um festim multimédia como não via desde os anos 1990. Esta minha descrição pode servir para afastar alguns. Jogos de aventuras multimédia há muito que deixaram de nos encantar. “Phantasmagoria” (1995) ou “The X-Files Game" (1998) foram bons quando saíram, mas hoje estão tão datados que nem uma remasterização os conseguiria

Guerra dos Mundos (2019)

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Nunca fui grande fã da "Guerra dos Mundos" (1897) de H. G. Wells, apesar de ter achado interessante a dramatização homónima (1938) para rádio de Orson Welles, mais pelo impacto social que produziu . Depois, os filmes homónimos de Byron Haskin (1953) e Steven Spielberg (2005) , também pouco me disseram. A razão principal para este meu desligamento tem que ver com o enfoque total no evento, a chegada de extra-terrestres inimigos, e nas suas consequências macro para a humanidade, sem haver uma efetiva dramatização, ou seja, uma perspectiva humana recortada de modo a permitir a nossa inclusão dentro do mundo. Na verdade, julgo que essa perspectiva faltou na obra original e suas adaptações pelo facto de se ter optado por manter um manto de desconhecido sobre os extra-terrestres. Ou seja, se não sabemos nada sobre eles, torna-se impossível criar variabilidade dramática nos humanos, uma vez que em face do desconhecido o humano só pode reagir pelo medo. Não havendo estímulos à signi