"Caderno Proibido" de Alba Céspedes

Depois de Elena Ferrante ter dito que Alba Céspedes tinha sido uma das suas maiores influências, foi a vez de Annie Ernaux, Nobel 2022, dizer: "Ler Alba de Céspedes foi, para mim, como entrar num universo desconhecido". A influência em Ferrante é por demais evidente, já sobre o universo desconhecido diria não e sim. Em "Caderno Proibido" (1957) Céspedes fala-nos de uma mulher de 43 anos, casada, mãe de dois filhos, classe-média, que vive numa Itália do pós-guerra, 1950, e que decide comprar um diário para pela primeira vez começar a exprimir os seus pensamentos, sentimentos e desejos. Ou seja, tematicamente, nada de mais próximo, comum e aparentemente acessível. Contudo, a forma como Céspedes representa a realidade da visão interior de Valeria apresenta uma magnitude de aprofundamento psico-social como nunca antes vimos. "O Caderno Proibido" abre com a singela frase — "Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para me lamentar; o mal está feito" — dizendo de imediato ao que vem, encerrando em si mesmo a explicação do porque é uma obra única.

Em Portugal, o livro não é editado desde esta edição da Minerva de 1972. Agora que foi reeditado um pouco por todo o lado, pode ser que alguma editora nacional se lembre de o recuperar.

Confesso que ao escrever estas linhas e recuperando a experiência de leitura senti a mesma aproximar-se de duas grandes obras que não tendo nada em comum, do ponto de vista do tema, se aproximam tremendamente não só pela forma diarística, mas acima de tudo pela frontalidade e honestidade. Falo de "Meditações" (180) de Marcus Aurelius e de "Memórias de Adriano" (1951) de Marguerite Yourcenar. Valeria é uma mulher europeia comum, igual a milhões de outras, não dominou impérios, nem produziu qualquer grande obra, no entanto, dá-nos acesso a um modelo riquíssimo do ser humano, capaz de caracterizar com grande exatidão a vida naquela época. Ao ler, só pensava, se pudesse ler obras destas, escritas há 500, 1000, ou 2000 anos, a minha compreensão sobre a vida nesse tempo seria tão mais rica. As dissertações sobre eventos, conquistas e derrotas da Babilónia, Grécia ou Roma dão-nos um mundo à superfície do icebergue da presença humana neste planeta, aquilo que Céspedes faz aqui é iluminar toda a parte submersa desse icebergue. 

Como diz Woolf em "Um Quarto só Seu": 

"O que nos faz falta, pensei — e porque não há-de uma qualquer estudante brilhante de Newnham ou Girton fornecê-la — é uma grande quantidade de informação; com que idade se casava; quantos filhos tinha em média, como era a casa dela; tinha um quarto só seu; cozinhava; era provável que tivesse uma criada? Todos estes factos jazem algures, presumivelmente, nos registos das paróquias e nos livros de contas; a vida da mulher isabelina média estará dispersa algures, pudesse alguém coligi-la e fazer um livro com ela." (1928:66)

E reforça, mais no final, assim: 

"E temos também a rapariga atrás do balcão — mais depressa queria conhecer a sua história verdadeira do que a centésima quinquagésima biografia de Napoleão" (1928:135)

Alba Céspedes (1911-1997) era filha do Embaixador de Cuba em Itália, neta do primeiro presidente de Cuba. Lutou contra o fascismo, foi presa duas vezes, e lutou pela emancipação da mulher. (Imagem do artigo do NYT, 13 janeiro 2023). 

É exatamente isto que Céspedes constrói em "Caderno Proibido" a história de uma mulher comum, o seu dia-a-dia, confrontada com o seu pensamento interior, ou seja, não apenas o que faz e como vive, mas principalmente a sua consciência do que faz e como vive. Ou seja, não é um relato descritivo do modo como vivia a mulher em 1950, mas é um relato sobre o modo como se via a mulher comum a si mesma em 1950. Este relato abre um manancial tremendo de possibilidades de inferências sobre as pressões e espartilhos sociais da época, daí um retrato impressivo psico-social. 

Repare-se que Valeria não usa o diário para se queixar da vida dura, da falta de dinheiro, da falta de respeito dos filhos, da falta de valor conferido pelo seu marido, mãe ou patrão. Ela relata tudo isso, sim, mas como factos do dia-a-dia e fá-lo com toda a teia de interdepêndencias. Não culpa, antes tece os quê e os como numa trama de ações, que permitem a quem lê compreender os porquê de cada uma dessas ações e reações. É como ver o mundo a partir do interior da mente de outra pessoa, é extasiante.

A primeira edição em inglês com tradução de Ann Goldstein, a tradutora de Elena Ferrante.

Naturalmente, sendo homem, não me consegui identificar com Valeria, e no entanto a minha Empatia com ela foi total. Posso dizer que o mais próximo que senti, em termos empáticos, foi com "Stoner" (1965) de John Williams, que dava conta também dessa vida comum, de classe média, de um professor universitário emanado de uma família de agricultores, com quem a minha identificação foi plena. No entanto, aqui a empatia aconteceu tão intensamente porque consegui ver em Valeria a minha mãe. Nascida na geração seguinte, teve ainda de lutar contra muitos desses espartilhos sociais, no entanto fê-lo também de cabeça erguida, sem perder tempo a culpar os outros ou a vida. Ainda que de origens opostas, Valeria descende da aristocracia italiana, caída em desgraça após a guerra, a minha mãe descendia de agricultores de subsistência. As duas vidas encontram-se porque Valeria soube o que era viver com muito, mas teve de partir para uma nova vida, construir todo um conjunto de novos valores sem qualquer suporte financeiro familiar. A minha mãe perdeu o pai, principal sustento da casa, com 13 anos, tendo sido obrigada a assumir o lugar dele, para sustentar os irmãos. Esse rombo, tão cedo, fez com que poucos anos depois pegasse no marido e emigrasse para fugir a uma vida de mera sobrevivência. Ambas desejaram sempre mais do que aquilo a que estavam destinadas, mas de uma forma que muito poucas vezes ousaram expressar, mesmo em privado. E quando o fizeram, ou deram a entender, nunca foi apontando o dedo a outros, nem foi refugiando-se na sua condição financeira ou de mulher, mas foi sempre num sentido construtivo, de futuro, com base num sentir, que para alguns pode parecer paradoxal, de Ambição Humilde.

Olhando para o miolo do romance, Céspedes não estava propriamente interessada em mostrar essa ambição humilde, apesar de também. O que aqui temos funciona como um grito feminino, que vai além da resposta a Woolf. Porque Valeria ganhava o seu dinheiro, conseguia oferecer um teto à sua família, mas pior do que não ter um quarto onde escrever, era ainda não se sentir livre para o fazer. O modo como ela dá conta da culpa de estar a escrever o que sentia num caderno, de o fazer às escondidas, faz do caderno proibido um dos maiores símbolos do aprisionamento da condição da mulher do século XX, o que no meu caso, permitiu "ver" todo um mundo interior da minha mãe que até hoje não tinha sequer equacionado.

Entretanto comprei todos os restantes livros de Alba Céspedes editados em Portugal nos anos 1960. Vamos ver como é a sua escrita fora deste livro em particular.

Goodreads 5/5 

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