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Vadio (2022), Simão Cayatte

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Há filmes em que o poder não vem do guião, mas da forma como a câmara decide existir no espaço. Vadio é um desses filmes. A história de dois jovens que se encontram num país cansado poderia ter caído na ilustração moral ou no comentário social previsível. Mas Cayatte filma de perto — quase demais — e essa proximidade altera tudo. A câmara está colada ao corpo. Não observa: acompanha. O movimento dos ombros, o respirar curto, a maneira de desviar o olhar; é aí que se joga o filme. A referência é clara: os irmãos Dardenne. A narrativa não se constrói por explicação psicológica, mas pela força física de estar no mundo. É por isso que Rubén Simões, o miúdo, carrega o filme. Ele não interpreta sofrimento: ele move-se como alguém que o conhece. Há verdade no gesto, no ritmo com que suporta a rua, no modo como protege o silêncio. A parceria com Joana Santos funciona, mas é ele que dá densidade, gravidade, permanência. O problema é que o guião tenta conduzir o drama. Há um tema forte — o a...

Olhem Para Mim (1983), Anita Brookner

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No quarto capítulo de "Look at Me", quase desisti. Havia detalhe a mais, descrição a mais, e eu sentia que a história se perdia na observação do insignificante. Mas continuei e, sem perceber bem quando, comecei a querer voltar àquele mundo. Um mundo pequeno, contido, quase imóvel. Um terrário de emoções: tudo o que acontece lá dentro está delimitado e, por isso mesmo, seguro. Anita Brookner constrói o mundo como quem organiza uma casa demasiado silenciosa; cada gesto, cada frase estão no sítio certo; com um ar é espesso, de contenção. Frances Hinton, a narradora, é uma mulher que vive rodeada de outros e, ainda assim, à margem. Observa-os, descreve-os, tenta compreendê-los. É através dessa observação obsessiva que sobrevive à ausência da chamada vida vivida. O que antes me cansava — o detalhe — acabou por se tornar a própria razão da minha admiração. Brookner não descreve para enfeitar: descreve para existir. O olhar é o corpo da sua personagem. E é por isso que "Look at...

Uma carta postal enviada do passado

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“La Carte Postale” (2021) é um livro particularmente emocionante pelo modo como romanceia parte da História que serve de cenário a uma saga familiar que atravessa de Moscovo a Paris, passando pela Letónia, Polónia, Israel, terminando na interseção entre Alemanha e França, em plena Segunda Grande Guerra. O livro baseia-se na família da autora, Anne Berest, e inicia-se no momento em que a família recebe um postal na caixa de correio (ver a capa do livro), já em 2003, no qual vêm inscritos os nomes dos bisavós e tios de Anne — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, todos desaparecidos em 1942, num campo de concentração na Polónia. O livro leva-nos atrás da investigação de Anne para descobrir quem terá enviado o dito postal e com que intenções. Pelo meio vamos descobrir a história daquelas 4 pessoas, do muito que atravessaram antes e durante a guerra, mas em essência vamos descobrir uma grande parte da História por detrás do colaboracionismo francês no tempo da ocupação francesa pelos Nazi. O t...

Anatomia de um casal

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“Anatomie d'une Chute" (Anatomy of a Fall / Anatomia de uma Queda) (2023), de Justine Triet, é um filme de grande intensidade psicológica, com um trabalho de direção, escrita e performance capaz de o colocar ao nível da literatura mais erudita. Somos envolvidos numa trama de um processo de investigação sobre a queda de um marido, do alto de uma janela, que se nos oferece com duas possibilidades de resposta: suicídio ou assassinato pela esposa. Contudo, essa trama interessa apenas à superfície, já que aquilo que está verdadeiramente em análise é o casamento entre dois escritores e um filho (11) que perdeu a visão num acidente. Ao longo de duas horas tentamos descobrir, por entre um novelo de suspeitas e possibilidades, o que terá acontecido, mas enquanto o fazemos aprofundamos o nosso conhecimento do casal e das personalidades de cada um. A obra apresenta um trabalho impressionante com um guião marcado por descrições minimalistas entrecortadas por diálogos profundos a rasar a m...

"Caderno Proibido" de Alba Céspedes

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Depois de Elena Ferrante ter dito que Alba Céspedes tinha sido uma das suas maiores influências, foi a vez de Annie Ernaux, Nobel 2022, dizer: "Ler Alba de Céspedes foi, para mim, como entrar num universo desconhecido". A influência em Ferrante é por demais evidente, já sobre o universo desconhecido diria não e sim. Em "Caderno Proibido" (1957) Céspedes fala-nos de uma mulher de 43 anos, casada, mãe de dois filhos, classe-média, que vive numa Itália do pós-guerra, 1950, e que decide comprar um diário para pela primeira vez começar a exprimir os seus pensamentos, sentimentos e desejos. Ou seja, tematicamente, nada de mais próximo, comum e aparentemente acessível. Contudo, a forma como Céspedes representa a realidade da visão interior de Valeria apresenta uma magnitude de aprofundamento psico-social como nunca antes vimos. "O Caderno Proibido" abre com a singela frase — "Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para...