Refúgio no Tempo de Georgi Gospodinov

Este livro não poderia ter surgido numa altura mais apropriada, já que trata de um assunto no qual tenho vindo a trabalhar com um aluno de doutoramento, o tratamento da demência por via da “terapia de reminiscência” que se baseia no uso de artefactos de média, no nosso caso a realidade virtual, para melhorar o bem-estar de pacientes. Gospodinov ficciona um mundo no qual é oferecido às pessoas a possibilidade de viverem na década, ou ano, que melhor lhes convir, levando assim a estratégia ao extremo, em vez de alguns conteúdos de média, quartos decorados, casas recuperadas, ou pequenas aldeias de retiro, sobe-se ao nível das nações, de toda a Europa. Com essa permissa coloca em jogo toda uma discussão sobre o enorme xadrez político vivido durante as décadas de 1930 a 1990 nas diferentes regiões europeias. Para que década quereríamos voltar se a opção nos fosse oferecida? O que ganharíamos? O que perderíamos? De que adiantaria? Vivemos do que está por vir, ou daquilo que já passou?

Gospodinov venceu com esta obra o International Booker Prize 2023

O livro é uma enorme dissertação sobre os processos da memória humana e a sua relação com a componente de nostalgia, algo que claramente toca mais a quem já passou dos 40. Até meio da vida, tudo parece estar ainda por acontecer e o melhor ainda é o que está por vir. Contudo, depois desse meio a esperança desespera, a força para rasgar o desconhecido arrefece e já só interessa o aconchego daquilo que se conheceu e deixou marcas boas. 

A Europa depois das eleições das décadas para que cada país desejava voltar

Gospodinov não aprofunda as razões porque todos procuram voltar à infância, apesar de ser esse o principal resultado da votação europeia realizada, mas de um ponto de vista biológico as memórias da nossa infância são não só as mais fortes, vívidas e intensas, como também são normalmente as menos carregadas de preocupações e problemas, logo mais atrativas e apetecíveis. A partir dos 20 anos começamos a guardar menos e menos do que fazemos, porque a surpresa vai sendo cada vez menor. É a emoção de surpresa que funciona como cola dos retalhos das nossas memórias. A partir dos 40 quase nada nos surpreende, por isso quase nada fica connosco. Se pouco fica, o reduto que nos atrai e brilha mais intensamente acaba sendo inevitavelmente a infância, o lugar onde se viveu, as pessoas com que se conviveu e os artefactos com que se interagiu. Damos por nós, muitas vezes, a desejar aquilo que Agatha Christie nos disse para não fazer — "Nunca Voltar a um Lugar Onde se Foi Feliz" —, porque, segundo ela, já não voltaremos a experienciar as coisas da mesmas forma, pelo simples facto de já não sermos os mesmos. Mas é mais do que isso, o revisitar de memórias transforma-as, altera-as, podendo levar mesmo à sua perda pela atualização das mesmas. Deste modo corremos o risco de não reviver o que foi bom, mas antes de nos deixarmos levar por uma espiral de atualização viciosa que não sai do lugar, não satisfazendo nem permitindo seguir em frente...

Mas a leitura não se faz só de ciência, o facto de Gospodinov ser búlgaro torna a narrativa mais interessante para nós portugueses, já que nunca deixa de lado a consciência de pertencer aos países do Sul, que amiúde vai usando para dar conta do estado da política da União Europeia, assim como do Brexit, enquanto recorda os tempos da Bulgária, e todo o leste Europeu, comunista, criando belos momentos de humor dramático, por vezes quase negro. A meio do romance, a discussão sobre as memórias e as suas origens chegam a metaforizar o estado atual do populismo político, recordando chavões como "Ser Grande Outra Vez" ou "Dantes é que era Bom", que Gospodinov não deixa passar sem acender os alertas de quem viveu na pele os efeitos de uma União Soviética. 

Deixo alguns excertos, em inglês por não ter cópia digital da edição da Relógio d'Água:

"First, a country that had always wondered whether or not it was part of the Continent set itself apart. Great Brexitania, as we called it then."
 
"We are constantly producing the past. We are factories for the past. Living past-making machines, what else? We eat time and produce the past. Even death doesn’t put a stop to this. A person might be gone, but his past remains. Where do all those heaps of personal past go? Does someone buy them, collect them, throw them away? Or does it drift like an old newspaper, blown by the wind along the street? Where do all those familiar and unfinished stories go, those severed connections that still bleed, all those dumped lovers; “dumped”—this word isn’t a coincidence, a garbage word.
Does the past disintegrate, or does it remain practically unchanged like plastic bags, slowly and deeply poisoning everything around itself?"

"I presume that 1968 did not exist in 1968. Nobody back then said, Hey, man, that stuff we’re living through now, it’s the great ’68, which’ll go down in history. Everything happens years after it has happened... You need time and a story for that which has supposedly already taken place to happen... with a delay, just as photos were developed and images appeared slowly in the dark..."

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