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A Vida é Difícil (2022)

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Kieran Setiya, professor de filosofia no MIT, não oferece ilusões em Life is Hard . Desde o início, reconhece que os problemas da vida — pessoais, políticos, existenciais — são demasiado grandes para serem resolvidos apenas pela razão. Mas a filosofia, ainda assim, pode oferecer algo: não a cura, mas apaziguamento. Este livro é menos um tratado sistemático do que um passeio reflexivo. Setiya convoca grandes nomes — Iris Murdoch, Virginia Woolf, Simone Weil, Adorno, Marx, a Escola de Frankfurt — mas fá-lo com uma leveza rara no meio académico. Nunca pesa sobre o leitor; antes conduz-nos como quem conversa ao final da tarde, sentado à sombra, olhando o mar. Recuperando conceitos do seu livro anterior, Midlife: A Philosophical Guide , Setiya revisita a distinção entre atividades télicas (com um fim) e atélicas (sem fim), mas desta vez reconhece abertamente a importância da narrativa. É importante chegar ao fim e obter sentido, criar significado, não podemos é transformar tudo na vida ...

Pode o Sentir ser Formalizado

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Philippe Schlenker apresenta, no seu livro,  "What It All Means" (2022),  uma proposta ambiciosa: construir uma semântica formal aplicável não apenas à linguagem natural, mas também a gestos, música e outras formas expressivas. No centro dessa proposta está a ideia de composicionalidade: o significado de um enunciado é inteiramente derivado do significado das suas partes e das regras que as combinam. Trata-se de uma herança direta da lógica de Montague , agora estendida a (quase) tudo, que me levou quase dois anos a ler. Philippe Schlenker é uma figura central no campo da semântica formal contemporânea. Investigador no Institut Jean-Nicod (CNRS) e professor afiliado na New York University, tem vindo a expandir os limites da semântica tradicional, aplicando-a a domínios antes considerados periféricos, como a linguagem gestual, a música e até a comunicação animal. O seu trabalho destaca-se pela combinação rara de rigor lógico e abertura interdisciplinar, tentando construir pont...

Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

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Durante as últimas semanas tenho-me encontrado, cada vez com mais frequência, a escrever com um assistente IA. Digo "com" de forma consciente: não me refiro apenas ao uso instrumental de uma ferramenta, mas a uma prática que tem revelado, de forma inesperada, traços de colaboração, de diálogo e até de transcendência. Esta experiência levou-me a questionar, com alguma ansiedade e profundidade, a natureza da criação, a ética da autoria e o que significa escrever com — e não apenas através de — uma entidade sem ego. Organizo aqui, como forma de registo e partilha, três grandes dimensões dessa reflexão. 1. A Experiência da Co-escrita com uma IA O que me atrai inicialmente nesta prática é a fluidez. Escrever com a IA reduz o peso da mecânica textual — já não preciso de lutar com cada frase, de reestruturar cada parágrafo. Mas o que me surpreende é que, paradoxalmente, essa leveza vem acompanhada de maior profundidade reflexiva. Ao libertar-me das tarefas formais, encontro espaço m...

Uma breve História da Inteligência

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" A Brief History of Intelligence: Evolution, AI, and the Five Breakthroughs That Made Our Brains " (2023) de Max Bennett é uma obra que nos transporta numa viagem fascinante pela evolução da inteligência humana, explorando como os avanços biológicos moldaram a nossa capacidade cognitiva e como essa visão tem vindo a informar o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Bennett identifica cinco transformações cruciais na evolução do cérebro biológico que suportariam os avanços na inteligência humana, cada um construído sobre o anterior para culminar na forma de inteligência que caracteriza hoje os seres humanos. O primeiro avanço, a Direção ( steering ) , refere-se à capacidade de se mover intencionalmente em resposta a estímulos. Este é o ponto de partida para qualquer forma de vida interagir com o ambiente de forma eficaz, permitindo aos organismos satisfazer necessidades básicas como encontrar alimento ou evitar predadores. A direção é fundamental para a sobrevivênci...

Jogar com a Realidade (2024)

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O livro " Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World " (2024) da neurocientista Kelly Clancy, é uma obra fascinante que explora a intrincada relação entre os jogos e a construção de realidade. Num tom académico, mas muito acessível, Clancy conduz o leitor por uma viagem histórica, filosófica e científica, demonstrando como os jogos, desde os mais simples aos mais complexos, têm influenciado e moldado as sociedades, as culturas e até mesmo a forma como percebemos o mundo, deixando alguns avisos claros sobre a excessiva crença nos mesmos. A autora estrutura o livro em torno de uma tese central: os jogos não são meras distrações ou passatempos, mas sim ferramentas poderosas que têm desempenhado um papel crucial na evolução humana. Clancy argumenta que os jogos são uma forma de simulação da realidade, algo que tenho vindo a considerar na última década, permitindo-nos experimentar, aprender e prever resultados em contextos controlados. Esta capacidade de "jogar...

A extinção da razão

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 “The Extinction of Experience: Being Human in a Disembodied World” (2024) era um livro que eu queria muito ler e queria muito gostar. Mas Christine Rosen não escreveu um livro sobre a Experiência Humana, antes listou um rol de queixas contra as mais recentes tecnologias de comunicação — ecrãs, smartphones, rede sociais, realidade virtual, IA, etc —, falhando na sustentação com evidências para a maior parte dessas queixas. Não basta citar um artigo aqui e um estudo ali. As evidências de impactos sociais, mais ainda no caso dos psicológicos, requerem amplos estudos, muito acima dos normais 30, 40 ou 60 individuos dos estudos isolados. Requerem replicação cuidada nas mais diversas culturas e circunstâncias e manutenção das condições e evidências ao longo do tempo. Utilizar estudos isolados para tecer causalidades sobre o estado da civilização como um todo é ingenuidade, para não dizer algo pior. Tanto aqui, como no outro, muito mais badalado, e já traduzido em Portugal, livro, “ A Ge...

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

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Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida , El Dorado , Shangri-La , Lemuria , Avalon , Agharta , etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.  8 episódios repletos de desinformação científica A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos.  "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos , pathos e logos —...

Marie Curie, academia e família

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Se algum dia vos passar pela cabeça a ideia de fazer um doutoramento, leiam este livro, "Madame Curie" (1937), escrito pela filha, Éve Curie. A principal característica que alguém, desejoso de abraçar o caminho da ciência, deve possuir, é aqui apresentada no seu expoente máximo: a humildade . Sem humildade, não é possível fazer ciência. Pode-se fazer bons negócios, mas ciência, efetiva, muito dificilmente. Marie Curie aprendeu desde muito tenra idade a importância dessa humildade, mas também a importância da resiliência, do trabalho continuado e persistente para chegar ao conhecimento. A sua história de vida é um hino à Ciência. O sobrenome Curie veio do marido, Pierre Curie, com quem casou em 1895, responsável por propiciar as condições, em França, para que Marie Curie realizasse o seu doutoramento no qual viria a descobrir dois novos elementos, o Polónio e o Rádio. Mas Marie nasceu Maria Salomea Skłodowska na Polónia, em 1867. Se a sua história de 1895 até 1934 impressiona ...

Muito barulho por nada

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“Co-Intelligence: Living and Working with AI” (2024) de Ethan Mollick transformou-se num sucesso de vendas e citações em muito pouco tempo, pelo que apesar do título não me oferecer nada de novo, acabei por ceder a ler para perceber de que era feito o hype. Não passou disso mesmo, ‘muito barulho por nada’. Mollick é um professor de gestão e inovação, grande entusiasta desta última geração de IA, pelo que dedica todo o livro a discutir as experiências que tem feito, a maior parte delas a nível meramente pessoal, ou seja, sem evidências. Por outro lado, quando cita estudos, fá-lo de forma ligeira, extraindo o que lhe interessa e ignorando o que não interessa, não mencionando o escopo e amostras reduzidas dos mesmos. Alguns casos são mesmo gritantes, e um deles abre logo o livro pelo que o transcrevo abaixo [1]. Ou seja, é um livro para amantes desta nova IA, para todos aqueles que acreditam que vão ter um assistente para fazer todo trabalho chato por si, mais, para todos os que pensam qu...

Verdade ou Ficção

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O livro "D'après une histoire vraie" (2015) de Delphine Vigan trabalha em dois registos, um de agrado popular, outro dedicado aos críticos e estudiosos da literatura. No primeiro, temos a história colada a "Misery" de Stephen King, em que uma leitora aborda a escritora, introduzindo-se na sua intimidade, para conseguir levar a escritora a escrever o que ela pretende. No segundo, temos a angústia literária da relação entre a ficção e realidade de onde emana a questão da pureza da verdade. Os diálogos entre a leitora e a escritora são muitíssimo bem escritos, capazes de desvelar a psicologia de ambas nos mais pequenos detalhes. O suspense e o mistério entretém-nos, enquanto a filosofia da literatura nos vai sendo servida, em pequenas doses, ao longo de todo o livro. Se se sente uma ligeira repetição na discussão entre a ficção e a realidade/verdade, essa serve essencialmente para nos fazer perceber que o assunto tem não só multiplas camadas mas múltiplas ramificaç...

Uma Teoria de Todos, por Michael Muthukrishna

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O livro “A Theory of Everyone: Who We Are, How We Got Here, and Where We’re Going” (2023) de Michael Muthukrishna é um sucessor de um conjunto de livros que usam a ciência para construir e apresentar uma visão global do ser humano neste planeta — tais como “Sapiens” (2011) de Y. N. Harari , “Guns, Germs and Steel” (1997) de Jared Diamond , e “ Cosmos ” (1980) de Carl Sagan —, indo mais longe, porque recorre ao conhecimento mais atual da ciência, mas mantendo as fragilidades naturais da generalização de sistemas complexos. Como tal, deve ser lido como uma narrativa em busca de uma visão agregadora de valor e significado, sabendo que a natureza não é planeada, mas improvisada. Ou seja, apesar da enorme credibilidade da argumentação apresentada por este autor, e pelos anteriores, é sempre necessário manter o véu da dúvida ativo.  Estas narrativas são imensamente atrativas para os nossos cérebros que estão desenhados para a construção de padrões e atribuição de significados. Tudo para ...