“Scavengers Reign”, a estranheza da criatividade

“Scavengers Reign” (2023), numa tradução livre, O Reino dos Necrófagos, é uma série, simultaneamente, estranha, criativa, excêntrica, adorável, bizarra e tranquila. Perdidos num outro planeta, como numa ilha isolada, somos confrontados com toda uma outra biologia, fortemente evolucionária, simbiótica e sistémica que assusta ao mesmo tempo que vai sendo reconhecível e nos reconforta. A atmosfera, criada pela dupla Joseph Bennett e Charles Huettner, entra no género da chamada Weird Fiction, mais concretamente no domínio da Weird Biology, fugindo do clássico horror (H. P. Lovecraft) para adotar uma visão mais exótica, que mescla o desconforto do novo e diferente com a calma e curiosidade da inquisição e descoberta, um pouco mais na linha do trabalho de Jeff VanderMeer, mais conhecido pela trilogia “The Southern Reach”, com o primeiro livro, “Annihilation” (2014), adaptado ao cinema (2018) por Alex Garland.

Várias versões do poster da série criadas por Charles Huettner

“Scavengers Reign” é uma série de animação constituída por 12 episódios de 25 minutos baseada num conceito experimentado previamente numa curta de animação, “Scavengers” (2016). A componente visual evoca, numa primeira abordagem, Moebius, mas rapidamente se expande e afirma o seu universo próprio, usando do mesmo traço fino e leve, mas saturando, aos poucos, a cor e os contrastes de luz. A animação segue o mesmo desígnio, pausada, leve, oferecendo espaço à reflexão, e garantindo a execução com uma equipa de produção reduzida. Na Direção da Animação, temos o português Francisco Magalhães, que já tinha trabalhado, enquanto animador, em outras obras de referência, como “Love Death + Robots” (2019), mas realiza aqui o seu primeiro trabalho de direção. Tudo é depois acompanhado por uma banda sonora electrónica minimalista, de Nicolas Snyder, entre outros, capaz de sustentar fortemente o sentir da atmosfera que as ideias visualmente animadas pretendem construir.


Enquanto experiência, o primeiro episódio impacta fortemente, tira-nos do conforto do conhecido, obriga a nossa mente a viajar, a especular numa fusão entre lógica e imaginação, distendendo em diferentes frentes os conceitos balizados por experiências anteriores. A enorme coerência das diferentes artes ao serviço da animação, cria um aconchego, um belo, capaz de suportar todo o nosso espanto com o bizarro. A série evolui, centrando-se mais nos conflitos humanos, normalizando a perspetiva daquele mundo, até meio. Depois disso, entra-se numa nova fase, em que se inicia a simbiose entre os humanos e a natureza do novo planeta, e tudo volta a ganhar novo ânimo, garantindo o nosso interesse até ao final. 


Fica para mim como mais um dos grandes experimentos criativos da última década que por ser tão arrojado não consegue tornar-se mainstream, mas serve a todos aqueles que buscam algo novo e estão disponíveis para aceitar a diferença. 


Criada para a HBO e estreada nos EUA a 19 de outubro 2023, ainda não está disponível no serviço HBO nacional. Entretanto vale a pena a leitura da entrevista dada ao Hollywood Reporter.


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