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Orbital: para além da Terra

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Ler Orbital de Samantha Harvey é como atravessar uma fronteira do conhecido para o incógnito. Inicialmente, a fragmentação do texto convida à descoberta, abrindo uma janela para a realidade estranha e fascinante da vida em órbita. Harvey consegue transportar-nos para uma experiência quase sensorial, onde detalhes aparentemente banais — como a roupa suja, ou o ritmo alucinante de dezasseis amanheceres e entardeceres num único dia terrestre — adquirem uma nova dimensão, revelando-se profundamente significativos e existenciais. “But there are no new thoughts. They’re just old thoughts born into new moments – and in these moments is the thought: without that earth we are all finished. We couldn’t survive a second without its grace, we are sailors on a ship on a deep, dark unswimmable sea.” É importante destacar o excelente trabalho de pesquisa realizado pela autora sobre as condições de vida em órbita. Harvey oferece uma riqueza de informação nunca antes explorada, aprofundando com precis...

El Eternauta (1957-2025)

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Comecei a ver The Eternaut  na Netflix atraído pela imagem da máscara e pelo azul saturado que parecia definir o tom da série. Havia ali algo que me puxava. Ainda assim, quando percebi que era uma produção da América Latina, quase desisti. Tinha receio que fosse mais uma série no registo de telenovela, como tantas outras. Mas as críticas internacionais eram tão positivas, que decidi continuar. No primeiro episódio, a série lançou-me num território visual que me fez pensar em Metro , o videojogo russo . O ambiente de neve tóxica, as máscaras, os corpos caídos nas ruas — havia ali uma composição quase poética. A morte não era choque, era quase uma aceitação — corpos dispostos como quadros numa galeria. Mas à medida que os episódios avançavam, especialmente a partir do terceiro, o tom começou a mudar. A sensação de uma invasão alienígena, a ameaça que se insinua entre os sobreviventes, começaram a evocar War of the Worlds e Invasion of the Body Snatchers . A série parecia abra...

Notas sobre "Everything Must Go" (2025)

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Terminei recentemente a leitura de Everything Must Go: The Stories We Tell About the End of the World de Dorian Lynskey, ou, para ser honesto, li até ao meio e depois fui lendo na diagonal. Não que o livro não tenha o seu valor. Lynskey apresenta um levantamento cronológico impressionante das narrativas sobre o fim do mundo, começando na Bíblia e avançando pelos séculos, atravessando temas como o último homem, a bomba, as máquinas ou pandemias. Um trabalho árduo, sem dúvida. Porém, a sensação dominante ao virar cada página foi a de uma oportunidade desperdiçada. O problema não está sequer na escolha de um enfoque marcadamente ocidental e cristão — uma limitação evidente, mas que aceitaria se viesse acompanhada de uma proposta clara. O verdadeiro vazio do livro reside naquilo que nele falta: pensamento. Lynskey faz um inventário, mas nunca arrisca uma interpretação, nunca procura responder ao que estes mitos e medos revelam sobre nós enquanto espécie, cultura ou sociedade. Tudo se...

O Ministério da Perda de Tempo

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“O Ministério do Tempo” (2024) de Kaliane Bradley foi promovido com toda a pompa em termos de marketing, conseguindo acumular mais de um milhar de críticas no Goodreads antes mesmo do seu lançamento. Muitas delas descreviam-no como algo totalmente original. Interessei-me pelo lado da ficção científica, mas o livro revelou-se não só fraco na estrutura narrativa e na escrita, como também desprovido de originalidade. O marketing foi tão bem feito que o título chegou a figurar entre os nomeados para diversos prémios: Audie Award Nominee for Fiction (2025), Women's Prize for Fiction Nominee for Longlist (2025), Goodreads Choice Award for Science Fiction e Nominee for Debut Novel (2024) . O livro saiu em maio de 2024 e, ao longo do ano, as avaliações mantiveram-se consistentemente acima de 4 estrelas. No entanto, ao revisitá-lo agora, vejo que a sua média desceu para 3.6 – muito mais próximo das 2 estrelas que tenho para lhe atribuir. Começando pela história. A premissa de transportar p...

A Parábola de Octavia E. Butler

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Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower  (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road  (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013) . Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros , viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas. Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilid...

"Fiasco" (1986) de Stanislaw Lem

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Stanislaw Lem (1921-2006) é considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX, tendo-se distinguido por uma produção prolífica que abrange 18 livros de ficção, dezenas de contos e dezenas de ensaios filosóficos. Fiasco , publicado em 1986, foi o último livro de ficção de Lem, coroando um percurso literário que inclui a sua obra de maior destaque, Solaris (1961) . Nesta sua derradeira obra, Lem retoma temas como a exploração do espaço e o confronto com inteligências alienígenas para questionar implicações éticas, políticas e filosóficas do desenvolvimento tecnológico. A ação arranca na órbita de Titã, uma lua de Saturno, com a nave espacial Eurydice a ser lançada numa missão que visa o estabelecimento de contacto com uma civilização alienígena situada numa “janela temporal” ótima, isto é, nem demasiado incipiente, nem demasiado avançada para se poder estabelecer comunicação. A bordo seguem militares, cientistas de várias áreas e um padre. Com estes, segue...

Silo, 2ª temporada

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A segunda temporada de "Silo" chegou com muitas expectativas, após uma primeira temporada muito envolvente e distinta. Contudo, é inevitável afirmar que não foi alcançada a mesma envolvência narrativa. O fluxo ao longo da temporada tem poucos altos, e muitos baixos, houve uma clara perda de ritmo. Enquanto a primeira temporada se destacava pelo continuado desvelamento de factos novos sobre o Silo, nesta segunda temos demasiados pequenos incidentes, com pouca relevância, a encher o tempo e a oferecer muito pouco. O desenrolar do enredo teria resultado melhor com uma edição que cortasse pelo menos 3 episódios do meio. Toda essa extensão desnecessária compromete o impacto emocional e a tensão dramática que a primeira série tinha criado tão bem. Ainda assim, a série encontra redenção em dois momentos-chave: o início e o final. A saída e a reentrada, no Silo, da protagonista são os pontos de maior força narrativa, deixando a impressão de que tudo o mais – os pequenos conflitos e d...

Kindred (1979)

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“Kindred” é um livro do seu tempo, mas é um livro que continua a fazer pleno sentido ser lido nas escolas, nomeadamente dos EUA, e  que não faria mal nenhum sê-lo também na Europa e América Latina. Octavia Butler é reconhecida como a primeira autora negra de ficção científica, e este seu livro é uma das evidencias que sustenta esse reconhecimento. Não só o tema é profundo, como o cenário usado para o discutir é emocionalmente inteligente. Temos uma escritora afro-americana nos anos 1970 que se vê de repente regressada ao passado da escravatura no sul dos EUA, tendo de lidar com as normas sociais do início do século XIX sob a cor da sua pele. O resultado apresenta-se como uma fusão, muito conseguida, entre “Time Machine” (1895) de HG Wells e “Beloved” (1987) de Toni Morrison. Entretanto, o livro ganhou uma adaptação recente para televisão . "Kindred" pode ser visto como uma simulação laboratorial, pela ficção, da vida em tempos de escravatura, oferecendo-nos não apenas a persp...

Lembrança do Passado da Terra

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“A Morte Eterna” é um livro verdadeiramente inebriante. Sendo a terceira parte de uma saga, vem munido de um extenso contexto que lhe permite trabalhar amplamente as reviravoltas de enredo que agarram a nossa atenção. Por outro lado, quantas terceiras-partes conhecemos que vão verdadeiramente além da obra original? É-me muito difícil dar conta da intensidade da experiência desta leitura, porque Liu Cixin junta o melhor da arte de contar histórias com o melhor da ciência. Cixin consegue imaginar, especular, a representação de uma realidade futura de tal forma factual que quase parece estar a escrever uma ficção histórica, talvez não por acaso o título da trilogia foi estabelecido como " Lembrança do Passado da Terra ". A quantidade de conceitos elaborados e os enredos construídos em redor desses é estonteante, dando conta de um virtuosismo singular, não na forma escrita, nem na construção dos personagens, mas na capacidade de criar mundos e fazer-nos passear dentro deles atrav...

“Scavengers Reign”, a estranheza da criatividade

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“Scavengers Reign” (2023), numa tradução livre, O Reino dos Necrófagos , é uma série, simultaneamente, estranha, criativa, excêntrica, adorável, bizarra e tranquila. Perdidos num outro planeta, como numa ilha isolada, somos confrontados com toda uma outra biologia, fortemente evolucionária, simbiótica e sistémica que assusta ao mesmo tempo que vai sendo reconhecível e nos reconforta. A atmosfera, criada pela dupla Joseph Bennett e Charles Huettner, entra no género da chamada Weird Fiction , mais concretamente no domínio da Weird Biology , fugindo do clássico horror (H. P. Lovecraft) para adotar uma visão mais exótica, que mescla o desconforto do novo e diferente com a calma e curiosidade da inquisição e descoberta, um pouco mais na linha do trabalho de Jeff VanderMeer, mais conhecido pela trilogia “The Southern Reach”, com o primeiro livro, “Annihilation” (2014), adaptado ao cinema (2018) por Alex Garland. Várias versões do poster da série criadas por  Charles Huettner “Scavengers...

Guerra dos Mundos (2019)

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Nunca fui grande fã da "Guerra dos Mundos" (1897) de H. G. Wells, apesar de ter achado interessante a dramatização homónima (1938) para rádio de Orson Welles, mais pelo impacto social que produziu . Depois, os filmes homónimos de Byron Haskin (1953) e Steven Spielberg (2005) , também pouco me disseram. A razão principal para este meu desligamento tem que ver com o enfoque total no evento, a chegada de extra-terrestres inimigos, e nas suas consequências macro para a humanidade, sem haver uma efetiva dramatização, ou seja, uma perspectiva humana recortada de modo a permitir a nossa inclusão dentro do mundo. Na verdade, julgo que essa perspectiva faltou na obra original e suas adaptações pelo facto de se ter optado por manter um manto de desconhecido sobre os extra-terrestres. Ou seja, se não sabemos nada sobre eles, torna-se impossível criar variabilidade dramática nos humanos, uma vez que em face do desconhecido o humano só pode reagir pelo medo. Não havendo estímulos à signi...