Quando um autor mente

Há muito tempo que não me deixava apanhar por discursos pseudo-intelectuais, muito usuais em certos meandros artísticos, mas desta vez não tive escapatória, tive de ler um ensaio de análise de um livro escrito pelo próprio autor para tentar compreender a origem e significado do livro que estava a ler. Falo do livro “O Pássaro Pintado” (1965) de Jerzy Kosiński, e do posfácio, publicado na edição da Ulisseia, que é uma tradução do texto escrito pelo autor para a edição alemã de 1966. “O Pássaro Pintado” tem fãs por todo o lado, do Goodreads a nomes como Elie Wiesel ou à lista dos 100 Melhores Romances de Sempre da TIME (2005). Contudo, quando há uns dois anos consegui arranjar uma cópia para o ler encontrei vários textos que atacavam o livro e o autor por ter sido apresentado como autobiografia, a ponto de receber o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro (1966) em França na categoria de Ensaio, quando na verdade não era. Poucos anos depois de lançado, e fruto da investigação de alguns jornalistas tal foi desmentido e o autor chegou mesmo a aceitar que o livro seria ficção. Por isso afastei-me, mas como fui encontrando louvores ao livro, aqui e ali, resolvi voltar ao mesmo, ao fim de poucos páginas, estaquei em choque, não pelos horrores sem fim descritos, mas pela inverosimilidade do discurso. Nada aqui se sente como verdadeiro, falo do discurso ficcional, quando comecei a ler já não acreditava que isto era baseado em qualquer vivência real. É tudo completamente extemporâneo, sem sentido, despregado de qualquer causalidade, nada sustenta o que está a acontecer. Causalidade! Não, as coisas são assim, porque são assim. Cada capítulo, um novo cenário, os mesmos horrores, uns atrás dos outros, tudo desconexo. E assim, nada me toca, nada me diz nada, puro enfado. Já senti mais a ver filmes de terror de baixo orçamento do que a ler isto. Aqui senti apenas que o autor estava a gozar com a minha cara, tentando elevar a fasquia do horror cada vez mais alta para impressionar o leitor. Tanta coisa errada, nada bate certo, e pior, acaba apenas por perpetuar mitos descabidos, no caso o de uma Europa de Leste que vivia na Idade Média em pleno século XX. Não admira que a Polónia tenha banido o livro, é tudo tão estapafúrdio, que se fosse escrito com base em qualquer outro país levaria ao mesmo efeito nesse outro país. Não que acredite na necessidade de o banir, desprezá-lo faz mais sentido. Mas compreendo que ofenda a identidade de um povo. Porque Kosiński não está aqui a atacar os soldados alemães, o nazismo, antes ataca, de forma violentíssima, o povo rural polaco. Não quero dizer que os polacos tenham sido uns inocentes na Segunda Guerra Mundial, mas daí a criar um cenário destes, e fazer daquele povo o berço do mal e promotor do genocídio mais hediondo da nossa civilização não tem qualquer sustentabilidade histórica. O Holocausto foi fruto de uma máquina racional emanada das mais altas patentes políticas nazis. Foi algo cerebral, científico, algo a que o povo rural da Polónia nunca acederia, nem tinha condições para potenciar. 

A melhor crítica ao livro veio de um outro autor polaco, mais famoso e respeitado, Stanisław Lem, que disse num ensaio seu sobre este livro: "O parasitismo sexual na era do genocídio é uma das maiores abominações imagináveis". É exatamente isso que temos aqui. Kosiński que não viveu nada dos horrores que relata, nem nada próximo do que viveram milhões de judeus, veio aproveitar-se, sem qualquer pudor da desgraça alheia para obter prazer e fama. É mau demais, admito que é ousado, escrever tanta aberração e depois colar-lhe o rótulo do Holocausto, é preciso alguém muito particular para se atrever a tamanha façanha. Mas desde o fim da guerra não faltaram pessoas a fazer passar-se por sobreviventes do Holocausto, foram encontrados e desmascarados muitos, mas muitos outros conseguiram benesses à custa da compaixão e culpa de muitos. Mas Kosiński consegue ser pior do que esses, porque não apenas procurou tirar vantagem do Holocausto, não teve qualquer pudor em apontar o dedo, atirar culpas, e ganhar com isso. É mais assustador pensar na mente de quem escreveu isto, do que nos personagens grotescos inventados pelo autor.

Mas comecei por falar num texto pseudo-intelectual que não era o livro em si. Assim, a meio do livro resolvi ler o posfácio, precisava de compreender melhor a mente distorciada que tinha engendrado tal. Começo a ler, e surge uma boa escrita, uma excelente articulação da forma, mas aos poucos vou percebendo que o fluxo semântico não progride, começa a arrastar-se, a enredar-se. Kosiński investe várias páginas a dizer que o livro que escreveu, “O Pássaro Pintado”, é ficção e simultaneamente não-ficção! Cita autores, escritores, psicanalistas, filósofos, e anda à volta, à roda, não saindo do lugar, tudo para justificar o injustificável. Kosiński não quer admitir que o que escreveu é uma total invenção, mas também não quer dizer que foi algo que viveu. Para tornar tudo mais rebuscado, escreve na terceira-pessoa, como se não fosse sobre ele, sobre si próprio que fala, mostrando a sua tentativa desesperada por desligar-se de uma enorme mentira. O texto é um exercício de atirar areia para os olhos das pessoas, um discurso elaborado, cheio de grandes vocábulos, grandes autores, tudo para dizer nada. No final percebemos que Kosiński realmente não tinha nada para oferecer com esta obra, na sua cabeça existia apenas um vazio.

Fecho com palavras de Virginia Woolf, em "Um Quarto Só Seu": 

"A ficção deve cingir-se aos factos, e quanto mais verdadeiros forem os factos, melhor será a ficção."

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