Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Memória

A bofetada de Isabela Figueiredo

Imagem
Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Os Anos de Annie Ernaux

Imagem
"Os Anos" (2008) é um registo romanceado de Annie Ernaux que nos leva pela mão da sua memória, de 1940 a 2006, a partir de fotografias que vai desfilando para se questionar sobre a afirmação de Chekhov, “ Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância. ” (excerto de “Três Irmãs” (1901)). Os vetores do Mundo de Ernaux: França, Província, Família (pais), Paris, Casa, Família (maridos e filhos) Liberação Sexual, Pílula e Sida Hipermercados, Consumo e Evolução Tecnológica Economia e Imigração Televisão, Política, Europa, Revoluções, África, Guerras e Terrorismo Música, Publicidade, Cinema e Literatura Tudo isto é visto a partir dos olhos de quem vai envelhecendo, não apenas a descrição do que existia em cada época, mas do modo como ela interpreta, primeiro como jovem, depois adulta, passando a mãe que vê o mundo pelos olhos dos filhos, ...

Uma carta postal enviada do passado

Imagem
“La Carte Postale” (2021) é um livro particularmente emocionante pelo modo como romanceia parte da História que serve de cenário a uma saga familiar que atravessa de Moscovo a Paris, passando pela Letónia, Polónia, Israel, terminando na interseção entre Alemanha e França, em plena Segunda Grande Guerra. O livro baseia-se na família da autora, Anne Berest, e inicia-se no momento em que a família recebe um postal na caixa de correio (ver a capa do livro), já em 2003, no qual vêm inscritos os nomes dos bisavós e tios de Anne — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, todos desaparecidos em 1942, num campo de concentração na Polónia. O livro leva-nos atrás da investigação de Anne para descobrir quem terá enviado o dito postal e com que intenções. Pelo meio vamos descobrir a história daquelas 4 pessoas, do muito que atravessaram antes e durante a guerra, mas em essência vamos descobrir uma grande parte da História por detrás do colaboracionismo francês no tempo da ocupação francesa pelos Nazi. O t...

Uma Criança e um País no Fim da História

Imagem
Lea Ypi escreveu um clássico de leitura compulsiva e altamente recomendado. "Free: A Child and a Country at the End of History" (2022) é um livro de memórias escrito com base na estrutura coming-of-age que nos leva da sua infância à adolescência, enquanto disserta sobre a vida na Albânia nos anos 1980-90, entre os últimos anos do comunismo e os primeiros do liberalismo. Na primeira parte, Ypi regressa à infância, desvelando o modo como o mundo de ideais era criado e mantido ao seu redor pela professora da escola primária e pelas meias-verdades dos pais e avós. Quando em 1990 a ditadura cai, o seu mundo transforma-se, com os seus pais a revelar-lhe que nunca tinham apoiado o partido, nem Enver Hoxha ou Estaline. Ypi descobre do dia para a noite que todas as suas referências tinham sido construídas sobre uma mentira...  O isolamento de décadas conferiu à Albânia um exotismo singular no cenário europeu. Primeiro desligou-se da URSS, depois da China, sempre detestou o Ocidente...

A "normalidade" de Auschwitz

Imagem
Apesar de “The Zone of Interest” (2023) de Jonathan Glazer ser baseado no livro (2014) homónimo de Martin Amis, o livro que melhor sustenta a realidade descrita por Glazer é “Comandante de Auschwitz: A Autobiografia de Rudolf Hoess” escrito em 1946, um ano antes de se cumprir a pena de morte ditada pelo Supremo Tribunal da Polónia. Primeiro, porque a adaptação de Glazer se destaca totalmente do livro de Amis, este usa nomes ficcionais à mistura com um enredo romântico! Segundo, porque Glazer coloca em cena a pessoa de Rudolf Hoess e a sua família, tal como a casa em que viveram. Comecei a ler a autobiografia atraído por um desconhecimento total da sua existência poucos dias antes de ver o filme e acabei de o ler poucos dias depois. A experiência de ambos forma um todo bastante desconfortável, com o livro a enquadrar a obscenidade e o filme a transgredir o espectador. “Comandante de Auschwitz” é o tipo de autobiografia que nunca leria porque se encaixa no registo de criminosos em série ...

Refúgio no Tempo de Georgi Gospodinov

Imagem
Este livro não poderia ter surgido numa altura mais apropriada, já que trata de um assunto no qual tenho vindo a trabalhar com um aluno de doutoramento, o tratamento da demência por via da “terapia de reminiscência” que se baseia no uso de artefactos de média, no nosso caso a realidade virtual, para melhorar o bem-estar de pacientes. Gospodinov ficciona um mundo no qual é oferecido às pessoas a possibilidade de viverem na década, ou ano, que melhor lhes convir, levando assim a estratégia ao extremo, em vez de alguns conteúdos de média, quartos decorados, casas recuperadas, ou pequenas aldeias de retiro, sobe-se ao nível das nações, de toda a Europa. Com essa permissa coloca em jogo toda uma discussão sobre o enorme xadrez político vivido durante as décadas de 1930 a 1990 nas diferentes regiões europeias. Para que década quereríamos voltar se a opção nos fosse oferecida? O que ganharíamos? O que perderíamos? De que adiantaria? Vivemos do que está por vir, ou daquilo que já passou? Gospo...