Sob a Água Negra (2016)

Não sou grande fã de leituras fantásticas, mas admito que Mariana Enriquez é bastante particular no domínio, pelo modo como consegue criar cenários e atmosferas profundamente realistas, mantendo a linha entre o possível e impossível muito próximas. Neste conto, “Bajo el Agua Negra” (2016), Enriquez partiu da história real de Ezequiel Demonty, um adolescente de 19 anos de um bairro pobre de Buenos Aires, que foi obrigado pela polícia a saltar para um rio, apesar de ter dito que não sabia nadar. Sob ameaça das armas dos polícias, foi obrigado a nadar até à outra margem, tendo acabado por se afogar. O corpo seria encontrado uma semana depois. Os eventos ocorreram em 2002, passados 2 anos, nove polícias seriam condenados com penas a variar de perpétua a 3 anos. Enriquez não dramatiza o que se passou, mas antes caracteriza e estrutura o mundo em que viviam aqueles adolescentes, permitindo-se depois especular sobre a moral dos comportamenteos e sua representação.

Pranchas criadas por Lucas Nine, uma adaptação dos primeiros parágrafos do conto.

Como nos diz Bustos (2020), na sua análise deste conto, o fundamento do género Gótico assenta numa relação de dúvida constante para com o sistema de autoridade, com a ficção a centrar-se no medo e angústia que sustenta os seus poderes. No caso de Frankenstein, temos o medo da ciência, no caso de Drácula o medo da diferença, neste conto de Enriquez temos o medo dos pobres. 

Assim, o conto que começa como uma normal novela policial, acaba por evoluir para um modo sobrenatural de horror, com o rio a ganhar centralidade, apresentado como um espaço de fronteira, entre as classes, que depois de ter atingido o estatuto do rio mais poluído do planeta, pela enormidade dos dejetos  por ali são escoados, se transforma paranormalmente quando para ali começam a atirar cadáveres. 

Este conto pode ser encontrado na coletânea "As Coisas Que Perdemos no Fogo" (2016), editado pela Quetzal.

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