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Hors-saison (2023)

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Há filmes que só se compreendem depois da meia-idade. Hors-saison , de Stéphane Brizé, pertence a esse território reservado aos que já amaram, perderam e voltaram a ver o amor de frente, com a serenidade de quem já não espera nada. O filme fala na língua do depois, depois da paixão, depois da raiva, depois do tempo ter feito o seu trabalho silencioso. Hors-Saison , foi traduzido para Portugal como A Vida Entre Nós Durante a primeira metade, a música de Vincent Delerm parece querer ocupar espaço demais, como se Brizé desconfiasse da força do silêncio. Mas quando o reencontro amadurece e o que estava contido começa a vibrar, a música deixa de ser excesso para se tornar respiração. Cada nota traduz o que já não pode ser dito; a emoção muda de plano, e somos levados por ela sem defesa possível. Ele é o centro narrativo, mas é através dela, Alice, que vemos tudo. O olhar feminino absorve o mundo, e é nele que o espectador adulto se reconhece. Ele carrega a culpa; ela, a lucidez. Entre os d...

“September 5” (2024)

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Há filmes que não se limitam a contar uma história, mas que nos devolvem ao corpo de uma época. September 5 , de Tim Fehlbaum, é um desses raros momentos: um mergulho vertiginoso na sala de controlo da ABC durante o atentado aos Jogos Olímpicos de Munique em 1972. A primeira impressão é a tensão brutal criada através do minimalismo. Não há efeitos de espetáculo nem multiplicação de cenários; tudo se passa na clausura técnica do estúdio, entre botões, cabos, auriculares, monitores analógicos. É o regresso a um tempo em que a informação eletrónica ainda respirava com a lentidão da fita magnética e a fragilidade dos circuitos físicos. O filme faz-nos sentir o peso das decisões sem rede digital — quando cada corte de câmara era irreversível, cada palavra dita em direto ecoava sem possibilidade de edição ou correção.

Da encenação do preto e branco

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Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

Crossing (2024)

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Realismo total. Duro. Melancólico. Perfurante. Humano. Saí do filme com aquela sensação rara de ter atravessado um mundo que não se exibe, mas se oferece, como se tivesse sido convidado a caminhar, em silêncio, ao lado das personagens.

"Ainda Estou Aqui", por detrás do vidro

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Vi ontem Ainda Estou Aqui e saí do filme com duas certezas: Walter Salles continua a ser um mestre a contar histórias e, ao mesmo tempo, há um vidro quase transparente que nunca me deixou entrar completamente naquela vida. Comecemos pelo que o filme tem de mais forte. A fotografia e a direção de arte são magníficas, cada plano tem a densidade certa, cada cor parece escolhida para permanecer depois na memória. A cinematografia e a montagem são de uma precisão impressionante: nada sobra, nada falta, o ritmo é sereno mas firme. As interpretações estão à altura. Fernanda Torres constrói um arco dramático completo, sem atalhos nem exageros, e todo o elenco secundário mantém a mesma contenção. A música, assinada por Warren Ellis, é tão contida quanto o resto do filme, discreta, mas presente nos momentos exatos, a sustentar a emoção sem jamais a manipular. Mas o que mais me prendeu foi o guião. Salles entende a força de não mostrar. Não há lágrimas fáceis, não há cenas explicativas em ...

Late Shift (2025) – A humanidade que resiste no silêncio

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Há filmes que nos atravessam sem pedir licença, e Late Shift , da realizadora suíça Petra Biondina Volpe, é um desses raros gestos de contenção absoluta que, precisamente por isso, nos trespassam. Vi-o sem saber ao certo o que esperar, e saí em silêncio, o corpo ainda a tremer, como se tivesse vivido um turno inteiro naquele hospital exausto. Tudo se passa num só cenário: um hospital público, corredores despidos de música, quartos de tensão, máquinas a apitar, pessoas a falhar e a resistir. O filme não precisa de mais. A câmara acompanha Floria (interpretada por uma Leonie Benesch absolutamente desarmante) durante o seu turno da noite. Nada de novo, dir-se-ia. Mas esse é precisamente o ponto: o que aqui se filma é o excesso do que já está a acontecer. Não há espaço para ornamentação, já basta o real. Leonie Benesch, que muitos conhecerão do soberbo The Teachers' Lounge , volta aqui a provar que há atrizes que não representam: habitam . Floria não é um papel, é uma presença. O mod...

Contos em Três Movimentos

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Não costumo chorar. Mas ontem, enquanto via a terceira história de " Wheel of Fortune and Fantasy" , de Ryūsuke Hamaguchi, senti algo a abrir-se. Não chorei, mas estive perto. E percebi: o que me impede não é a ausência de emoção, é o lugar onde ela se instala. A literatura, a que leio, a que admiro, raramente me faz chorar. Talvez porque me puxa para o pensamento, para o desdobramento do gesto, para a arquitetura das intenções. No cinema, porém, quando tudo se alinha, a voz, o olhar, o tempo suspenso entre duas personagens que fingem e, no fingimento, se reconhecem, acontece outra coisa. A emoção pede presença. O filme de Ryūsuke Hamaguchi não tem música que empurra, nem efeitos que sacodem. Tem apenas três histórias. Três encontros. Três variações sobre o que nos prende e nos escapa. E talvez seja isso que o torna tão devastador: não há heroísmo, nem redenção, apenas o espanto íntimo de nos vermos ali, no centro de uma palavra mal dita, de um silêncio demasiado longo, de um...

O corpo que Homero não escreveu

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Hoje escrevi sobre Aquiles. Ontem, sobre Penélope, no Letterboxd . E percebi que não fazia sentido deixá-la fora deste espaço. Se há algo que Achilles  (2025) , dos Divine Comedy, e Return  (2024), de Uberto Pasolini, me revelaram nestes dois dias, foi isto: quanto mais o tempo passa, mais me apego à Ilíada e à Odisseia . Não pela fidelidade ao mito, mas porque neles encontro as origens do que ainda tentamos ser, e o contorno daquilo que só muito recentemente começámos a escrever. Return tenta o impossível: dar densidade psicológica e emocional a personagens que nunca foram concebidas para a ter. Juliette Binoche, como Penélope, traz à pele o peso do tempo e do silêncio. Ralph Fiennes, como Ulisses, regressa não como herói, mas como homem esvaziado pela guerra. O filme quer redimir o reencontro com uma complexidade humana que o mito nunca previu — e ao tentar, expõe aquilo que está ausente no coração da epopeia. A Odisseia é uma maravilha de estrutura, ritmo e tensão narr...

A Cassandra da Casa Fechada

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Não saí bem deste filme. Fiquei chateado. Transtornado. Quase irritado. Não porque falhe, pelo contrário, talvez tenha sido demasiado eficaz. O que me perturbou foi a ausência de alento, de rutura, de qualquer abertura. O que me doeu foi ver Leila, que tinha tudo — energia, visão, lucidez — terminar soterrada num mundo que não a merecia. Fiquei magoado porque o filme não lhe deu o espaço de florir, de transformar, de desbravar o seu caminho. Sou um amante das histórias que mostram como se sai, como se cresce, como se transforma. E aqui, tudo ficou igual. Tudo permanece fechado. " Leila's Brothers " (2022), Saeed Roustayi Leila podia ter sido como Tara Westover , como tantas mulheres que desafiam a gravidade das suas origens e rompem com os códigos herdados. Mas não. Aqui, o que a impede não é um sistema político, nem uma ideologia fechada, é uma teia de afetos mal resolvidos, um emaranhado de culpas e dívidas emocionais, onde a incompetência masculina, não religiosa, não ...

Entre o Corpo e o Absurdo — Warfare (2025)

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Em 2015, observei na análise a Ex Machina que a estética de Garland assenta não apenas no que nos dá a ver, mas sobretudo na forma como nos obriga a ver¹. Voltei a essa ideia em 2019, ao desmontar a «história de aniquilação» de Annihilation ², e em 2020, quando Devs expôs o determinismo algorítmico que sufoca o futuro³. Ao longo deste percurso, o realizador interroga os limites entre ontologia e violência. Com Warfare , revisita esse nó, mas abandona o laboratório e o aparato metafísico para filmar um corpo que treme no centro de uma casa em ruínas. Saí do filme a sentir‑me como quem se liberta de uma câmara hiperbárica: o som ainda a vibrar, a pele roçando os micro‑espasmos, a mente turva. Garland não quer que pensemos; quer que sintamos – que seja o corpo a lidar com o absurdo antes de o intelecto o tentar traduzir. A narrativa é depurada ao extremo. Não há grandes arcos morais nem discursos tácticos; apenas o acúmulo de estímulos que nos empurra cada vez mais fundo para dentro do ...

Dalva e o Cinema do Pós-Trauma

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Fui para Dalva à espera de comoção. Esperava que a história de uma menina abusada pelo pai me esmagasse, me revoltasse, me fizesse chorar. Mas o que encontrei foi algo muito mais raro: um filme que recusa a catarse e, com isso, devolve ao espectador o trabalho de pensar. Dalva , de Emmanuelle Nicot, não dramatiza o trauma, não exibe as feridas, não nos conduz pela mão. O que vemos é o depois imediato , o espaço vazio entre o fim de uma relação abusiva e a reconstrução de uma vida possível. E é nesse tempo narrativo pouco explorado que reside a sua força. A protagonista, Dalva, tem 12 anos. Mas comporta-se, move-se e veste-se como uma mulher adulta. Não há exagero, nem histeria. A violência está no descompasso. Os gestos, os olhares, o modo como cruza as pernas — tudo nela parece aprendido. O seu corpo é um palco. Mas o guião já não lhe serve. A realização é contida, rigorosa. A câmara observa sem invadir. A montagem corta antes da explicação. O guião é admirável pela sua contenção: ...

A loucura que não chega para quebrar a fantasia

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Realizado por Benoît Delhomme, Mothers' Instinct (2024) adapta o romance belga "Derrière la haine" (2013) de Barbara Abel , trazendo para o ecrã a história de duas mães cuja amizade é corroída por uma tragédia. Anne Hathaway e Jessica Chastain lideram um filme que parece, à superfície, um thriller psicológico tradicional — mas que, no seu subsolo, expõe algo mais inquietante — a derrocada de uma alma mascarada pela preservação da perfeição de uma era passada. Interpretado de forma magnífica pelas duas atrizes, o filme começa num compasso lento, impregnado de pequenos gestos quotidianos que ocultam tensões subterrâneas. Depois, acelera — primeiro timidamente, depois de forma vertiginosa — até mergulhar numa espiral de decisões insanas que culminam numa insanidade silenciosa, tão subtil que quase se confunde com a normalidade. É precisamente nesse bordado entre o realismo psicológico e a estrutura de thriller que o filme opera: encena uma época passada — os anos 1950 — mas ...

"The Peasants", de 1909 para 2023

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"The Peasants" (2023) é o segundo filme feito com a mesma técnica — rotoscoping e ilustração a óleo — usada no inesquecível " Loving Vincent " (2017), sobre a vida de Van Gogh, ambos produzidos pela polaca  BreakThru Films . Em "The Peasants" temos a adaptação de um clássico homónimo do Nobel  Władysław Reymont . O filme começa com composições belíssimas suportadas por cores e texturas que gritam pedindo para pararmos a imagem e admirarmos cada momento, saborear, sentir. A história demora a contextualizar, o romance original é de 1909, mas depois de entrar no conflito não nos larga mais. A mistura entre a enorme beleza visual e a intensa tragédia acaba por produzir um impacto em nós no final do todo, do qual não conseguimos sair passadas várias horas. É um hino à condição da mulher, um recordar do mundo de onde viemos.

Sobre as Ervas Secas

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"About Dry Grasses" (2023) é majestoso na forma como lida com a melancolia e a misantropia relacionando-as com o comunitarismo e o liberalismo tudo a partir de um trio de professores deslocados por quatro anos numa região inóspita de Anatólia (Turquia). Sinopse: "Um jovem professor espera ser transferido para Istambul após quatro anos de serviço obrigatório numa aldeia remota, mas é acusado de contacto inapropriado por duas alunas. Depois de perder a esperança, uma colega oferece-lhe novas perspectivas de vida." Ceylan cria a atmosfera por meio da composição visual, do tempo e das performances gerando o espaço ideal para o surgimento das questões, apresentando as posições por meio de diálogo mas essencialmente de ações e conflitos. Existem vários momentos simbólicos, existe quebra da quarta-parede a meio de um momento íntimo que nos parece querer alertar para a irrealidade do que está a acontecer. É, em essência, uma obra de grande amplitude humana, capaz de nos que...

A Máquina Fantástica (2023)

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"What a Fantastic Machine" (2023) é um ensaio audiovisual sobre a evolução das imagens audiovisuais, desde a sua génese, com a primeira fotografia de Nicephore Niepce, em 1828, até ao mundo infinito criado pelas 45 mil milhões de câmaras usadas diariamente para registar, fabricar e partilhar a derradeira experiência audiovisual. O trabalho de Axel Danielson e Maximilien Van Aertryck é uma autêntica masterclass de 1h30, não só pela reflexão que nos obriga a fazer, como pelo formato adotado que segue a máxima estilística do audiovisual de hoje, a captação de atenção imediata, total e contínua. O ensaio faz mais perguntas do que as respostas que consegue dar, evidencia um conjunto de factos históricos relevantes, nomeadamente sobre os primeiros momentos de cada nova corrente, alimentando a nossa curiosidade pelo desejo de chegar a compreender o que se passa aqui, nomeadamente com o fascínio da espécie humana pelas imagens audiovisuais. As evidências apresentadas são muito claras...

Build de Tony Fadell

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Confesso uma certa desilusão com o livro "Build: An Unorthodox Guide to Making Things Worth Making" (2022) dadas as expectativas. Tony Fadell foi responsável por conceptualizar a fisicalidade do iPod e do iPhone. A interface circular foi invenção sua, e a interface touch do iPhone surgiu a partir de uma melhoria de um conceito antigo, o Pocket Crystal (1989) , em que tinha estado envolvido na General Magic. Talvez o melhor de tudo seja mesmo o seu relato sobre a General Magic, mas tudo o que ele aqui diz pode ser encontrado no muito mais interessante documentário de 2018 . De resto, Fadell entrega muito pouco ou nada, além dos conhecidos chavões de seguir a paixão, de trabalhar arduamente para conseguir emergir da multidão, esquecendo uma quantidade de outras variáveis que garantem o sucesso de uns em detrimento de outros.  Aliás, nesse sentido esperava maior transparência sobre o que foi invenção de Fadell, de Yve e Jobs . Pois, lendo este livro, no meio dos outros sobre ...

A "normalidade" de Auschwitz

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Apesar de “The Zone of Interest” (2023) de Jonathan Glazer ser baseado no livro (2014) homónimo de Martin Amis, o livro que melhor sustenta a realidade descrita por Glazer é “Comandante de Auschwitz: A Autobiografia de Rudolf Hoess” escrito em 1946, um ano antes de se cumprir a pena de morte ditada pelo Supremo Tribunal da Polónia. Primeiro, porque a adaptação de Glazer se destaca totalmente do livro de Amis, este usa nomes ficcionais à mistura com um enredo romântico! Segundo, porque Glazer coloca em cena a pessoa de Rudolf Hoess e a sua família, tal como a casa em que viveram. Comecei a ler a autobiografia atraído por um desconhecimento total da sua existência poucos dias antes de ver o filme e acabei de o ler poucos dias depois. A experiência de ambos forma um todo bastante desconfortável, com o livro a enquadrar a obscenidade e o filme a transgredir o espectador. “Comandante de Auschwitz” é o tipo de autobiografia que nunca leria porque se encaixa no registo de criminosos em série ...

A experiência do Deepfake

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"Another Body" (2023) é um documentário sobre o impacto de pornografia deepfake numa estudante norte-americana de engenharia. Dá conta do modo como a descoberta de múltiplos vídeos pornográficos alterados com a sua cara transforma totalmente a sua vida e até a sua personalidade. O filme ganhou vários prémios por tratar um tema de extrema relevância para o qual ainda não existem leis, e em particular pela forma inovadora de dar voz às vítimas, ao utilizar o próprio deepfake para que as vítimas pudessem anonimamente. O trabalho é de excelência, não se percebe nunca que é deepfake , a não ser quando propositadamente se mostra a variabilidade do efeito para que se perceba que é deepfake . A enorme vantagem desta abordagem é que permite um acesso direto à emocionalidade das pessoas reais, tornando todo o processo de storytelling mais intenso. Apesar do brilho técnico, "Another Body" é um documentário angustiante pelo impacto demonstrado na vida das vítimas e pelo enqua...

“A Voz das Mulheres”, livro e filme

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“A Voz das Mulheres” (2018) foi escrito por Miriam Toews (1964), escritora canadiana, descendente das comunidades ucranianas emigradas para Manitoba, Canada. Toews foi menonita até aos 18 anos , o que a torna particularmente habilitada para falar de um dos mais hediondos crimes ocorridos numa comunidade religiosa em pleno século XXI. Entre 2005 e 2009 , 151 mulheres , entre os 3 e os 65 anos , da colónia de menonitas de Manitoba na Bolívia, foram violadas, várias mais do que uma vez, por um grupo de 8 a 9 homens, que usaram um produto anestésico para vacas para deixar as mulheres inconscientes. Em 2022, Sarah Polley (1979), realizadora canadiana, escreveu e realizou o filme homónimo pelo qual recebeu o Óscar de Melhor Argumento Adaptado. Se o livro é bom, o filme parece ser melhor, contudo, após breve reflexão percebi que ambos isolados são bons, elevando-se apenas a excecionais quando experienciados em conjunto. Ou seja, o livro e o filme funcionam como duas peças estéticas complement...