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Quando a Justiça está no Silêncio

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Várias críticas recentes à série " Secrets We Keep " (2025), da Netflix, apontam a forma como a narrativa falha em fazer justiça a Ruby, a jovem au pair filipina que desaparece sem que ninguém — nem os empregadores, nem a polícia, nem o Estado — realmente lute por ela. Um comentário em particular, vindo de um espectador filipino, afirma que o sofrimento de Ruby é usado como “ruído de fundo” para proteger o conforto dos brancos. É um olhar que compreendo, mas com o qual profundamente discordo.  A série não ignora Ruby — a Dinamarca é que o faz. E a série, ao mostrar isso sem filtros, sem consolo narrativo, está precisamente a denunciar esse apagamento. O que nos inquieta em Secrets We Keep não é o que a série esconde, mas sim aquilo que expõe de forma brutal: uma sociedade que não reconhece humanidade plena às suas cuidadoras, nem mesmo quando elas desaparecem, nem mesmo quando são vítimas de crimes hediondos. Se Katarina e o seu marido fossem punidos, estaríamos a ver uma f...

Destruição Social

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A série Little Bird é uma obra televisiva canadiana que nos mergulha no terror das consequências do " Sixties Scoop ", um período sombrio da história do Canadá. Durante as décadas de 1950 a 1980, milhares de crianças indígenas foram removidas à força das suas famílias e comunidades, sendo adoptadas por famílias não indígenas. Esta política visava a assimilação cultural, mas acabou por se transformar numa ação de profunda destruição social, criando traumas profundos na identidade de todos os envolvidos. A série é baseada em factos reais . A narrativa da série centra-se em Bezhig Little Bird, interpretada por Darla Contois, uma mulher indígena adoptada por uma família judaica em Montreal. Ao longo dos episódios, acompanhamos a sua autodescoberta e o modo como se tenta religar às suas raízes, enfrentando tudo e todos, num autêntico carrossel de emoções intensas decorrentes da adoção forçada. A série destaca-se pela abordagem psicológica de temas complexos, como identidade, pert...

Paradise (2025)

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A nova série Paradise , da Disney, trouxe uma promessa ambiciosa: um thriller político pós-apocalíptico com uma estética trabalhada e um ritmo narrativo intenso. Criada por Dan Fogelman, a série apresenta um cenário intrigante – um bunker subterrâneo no Colorado, anos após um evento catastrófico, onde um agente do Serviço Secreto (Sterling K. Brown) investiga o assassinato do Presidente dos EUA. Mas, para além do enredo, o que me capturou foi a sua abordagem estética e estrutural – e, infelizmente, também a sua incapacidade de manter a excelência inicial. Os primeiros dois episódios de Paradise estão entre o melhor que já se fez em televisão. A série inicia com um impacto tremendo, criando uma tensão quase palpável através da montagem ágil, dos enquadramentos precisos e da utilização de silêncios e diálogos afiados. Há um minimalismo visual que funciona magistralmente – a contenção da mise-en-scène amplifica o sentido de urgência, obrigando o espectador a absorver cada detalhe com um...

Eulogy (Black Mirror, E5.S7)

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Há obras que não nos comovem por aquilo que revelam, mas pelo modo como o fazem. Eulogy , episódio  cinco da sétima temporada de Black Mirror, não me tocou por conter uma reviravolta comovente, nem por recuperar a imagem de um amor perdido. Tocou-me porque soube conduzir, com precisão, o gesto de revisitar uma memória — ponto por ponto —, suportado por uma IA realisticamente desenhada. A força do episódio não está tanto na dor do que se perdeu, mas na coreografia do recordar: o modo como uma imagem puxa uma pergunta, como uma música arrasta uma sensação esquecida, como o olhar sobre um objeto antigo pode fazer tremer um mundo interior inteiro. O episódio não obriga à catarse, mas convida a lembrar aquilo que esquecemos por defesa, aquilo que só pode ser revisto se houver alguém a caminhar connosco. Foi isso que me deixou em êxtase, a rara experiência de ver uma obra capaz de encenar a complexidade do recordar sem pressa, sem manipulação, sem atalho emocional. A representação do cu...

SEE (1.ª temporada)

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É quase impossível não nos sentirmos seduzidos pelo mundo de SEE (2019) . A série envolve-nos num universo visualmente marcante, onde a ausência de visão molda o quotidiano, a linguagem e a guerra. E, no entanto, à medida que os episódios avançam, é essa mesma sedução que começa a ruir sob o peso de um guião preguiçoso, incoerente e preso a convenções ultrapassadas. A primeira grande fissura surge numa das cenas mais faladas da temporada: a masturbação da Rainha Sibeth enquanto reza. Se, num primeiro olhar, o gesto poderia ser lido como uma fusão transcendental entre espiritualidade e prazer — quase uma performance de autonomia corporal e mística —, rapidamente percebemos que a série não quer, afinal, explorar essa complexidade. A repetição do ritual, agora forçando uma escrava a um ato sexual, revela o subtexto: estamos perante a velha figura da vilã hipersexualizada, onde o corpo feminino serve para marcar perversidade e desvio. Uma leitura que poderia ter sido libertadora torna-se a...

Adolescence (2025): O realismo da incompreensão

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Em tempos de saturação audiovisual, quando tudo parece já ter sido tentado e filmado, surge uma série capaz de nos desarmar por completo. "Adolescence" (2025) , cocriada por Stephen Graham e Jack Thorne, impõe-se como uma experiência tão avassaladora quanto singular, não apenas pelo que mostra, mas sobretudo pelo que recusa mostrar. A série apresenta-se em quatro episódios, cada um filmado num único plano-sequência contínuo, conjugado com grandes planos (close-ups) sufocantes, criando uma imersão emocional de intensidade quase insuportável. A técnica formal não é mero exercício de estilo. O uso do plano-sequência sem cortes, aliado à proximidade extrema dos rostos das personagens, elimina qualquer possibilidade de distanciamento. Somos arrastados para dentro do espaço emocional dos protagonistas sem respiro, sem possibilidade de fuga. A câmara não nos oferece alívio; ao contrário, mantém-nos reféns, obrigando-nos a confrontar cada expressão, cada silêncio, cada hesitação. Lem...

A genealogia de um assassino

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O suspense é bem desenvolvido e mantido, mesmo que estejamos à espera de um pouco mais. Esta é uma das primeiras impressões que podem ter "The Breakthrough" (2024), uma série policial em quatro partes da Netflix que dá conta de um um acontecimento real, ocorrido na cidade de Linköping, Suécia, em 2004, quando um duplo homicídio (incluindo uma criança de 8 anos) foi perpetrado num bairro residencial, às 8h30 da manhã, não tendo sido encontrado o assassino durante 16 anos, apesar da investigação ter sido mantida sempre ativa. A resposta aos familiares das vítimas só chegaria em 2020, depois de se ter recorrido a um método comercial de reconstrução de árvores genealógicas familiares. Cada episódio tem cerca de 40 minutos, o que faz com que a experiência completa tenha pouco menos de três horas, ou seja, poderia ter sido um filme. Não teria sido diferente, pelo menos em termos da experiência de binging, mas destaco o tom estético da série que é altamente coerente, apoiado por des...

O nascer do Oeste americano

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A série "American Primeval" (2025), dirigida por Peter Berg, representa uma disrupção dos cânones narrativos e estéticos do género Western. O argumento da série, de Mark L. Smith, oferece uma desconstrução do Western clássico, recusando a glamourização de heróis, pioneiros e mesmo nativos. Explora-se o sofrimento humano, a violência sistémica e as profundas ambiguidades morais que moldaram a expansão para o Oeste americano.  Com uma escrita arrojada, cinematografia imersiva e performances notáveis, este novo olhar redefine um mundo que tem sido mitificado com base numa imaginário longe da realidade. O trabalho de câmara e fotografia, destaca-se por uma abordagem crua e atmosférica. O uso de paletas de cores frias e sombrias e de enquadramentos sobre a vastidão das paisagens conferem à série um tom introspectivo. A natureza pode ser bonita, mas não deixa de ser mais um elemento hostil que condiciona a vida e as relações interpessoais naquele lugar, recordando "Butcher...

Black Doves, violência e inteligência

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O ano de 2025 fica desde já marcado por "Black Doves", apesar de ter chegado ainda em dezembro, a tempo do Natal, só a vi nas primeiras semanas deste ano. É uma série que marca o género de espionagem. A produção, liderada pela atuação brilhante de Keira Knightley, apresenta uma narrativa que mistura intensidade emocional, reflexões sociais e um visual cinematográfico muito atrativo. Keira Knightley é fantástica a interpretar dois papéis num só. Como Helen Webb, uma mãe britânica casada com um ministro, Knightley incorpora a composição de uma vida aparentemente tradicional. Contudo, ao assumir o papel de uma espia indomável e inteligente a sua performance transcende todas as expetativas, apresentando a dualidade da personagem num trânsito constante entre o doméstico e o perigo. Esta transição reflete não apenas a excelência da performance, mas também o brilho do guião. Um guião que se destaca pela acuidade com que funde violência e inteligência. A personagem de Helen Webb mani...

Silo, 2ª temporada

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A segunda temporada de "Silo" chegou com muitas expectativas, após uma primeira temporada muito envolvente e distinta. Contudo, é inevitável afirmar que não foi alcançada a mesma envolvência narrativa. O fluxo ao longo da temporada tem poucos altos, e muitos baixos, houve uma clara perda de ritmo. Enquanto a primeira temporada se destacava pelo continuado desvelamento de factos novos sobre o Silo, nesta segunda temos demasiados pequenos incidentes, com pouca relevância, a encher o tempo e a oferecer muito pouco. O desenrolar do enredo teria resultado melhor com uma edição que cortasse pelo menos 3 episódios do meio. Toda essa extensão desnecessária compromete o impacto emocional e a tensão dramática que a primeira série tinha criado tão bem. Ainda assim, a série encontra redenção em dois momentos-chave: o início e o final. A saída e a reentrada, no Silo, da protagonista são os pontos de maior força narrativa, deixando a impressão de que tudo o mais – os pequenos conflitos e d...

Narrativas Streaming: 2024

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Nos últimos doze meses, explorei uma ampla variedade de narrativas oferecidas pelas plataformas de streaming, confirmando a riqueza e a diversidade da produção audiovisual seriada. O panorama tem vindo a afirmar-se ao lado, e por vezes mesmo acima do cinema, igualando muitas vezes aquilo que até agora só a literatura conseguia fazer, nomeadamente no desenvolvimento de personagens. Analisando a seleção tenho quase tudo no domínio do thriller focado em dois grandes géneros: policial e ficção-científica.  Selecionei as melhores, no domínio narrativo, identificando as plataformas de streaming onde vi cada uma. Em cada plataforma, estão por ordem de qualidade. FILMIN Prisoner (Dinamarca, 2023) ( IMDB ) Criador: Kim Fupz Aakeson Uma narrativa sombria que explora os limites da liberdade e da mente humana. Sem grandes artifícios, a série prende a atenção pela crueza entre os personagens. The Sixth Commandment (UK, 2023)( IMDB ) Criadora: Sarah Phelps Misteriosa, esta minissérie aborda um...

Papisa e Generala

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Há 20 anos que pretendia ler “A Papisa Joana” muito motivado pela premissa — uma mulher Papa — contudo algo me foi sempre afastando do livro. Chegado ao fim, parece-me que a minha intuição tinha alguma razão de ser. Em vez de ficção histórica, temos romance e aventuras, com todos os problemas que daí advêm, nomeadamente as coincidências de enredo que forçam o suspense e espanto assim como os personagens perfeitamente delineados entre bem e mal, a que se junta a história de amor à lá Romeo e Julieta. Por outro lado, é preciso reconhecer que Donna Woolfolk Cross fez um excelente trabalho de investigação sobre a época em questão, o século IX, não apenas nos modos de viver, ou sobreviver, mas também do funcionamento da Igreja. Tudo junto, acaba por, no meio de alguns enfados, ser uma obra de leitura rápida, e mais importante, capaz de nos transportar para a época. Capa do livro sobre a Papisa e cartaz da série sobre a Generala. Relativamente à componente histórica, parti para o livro com a...

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

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Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida , El Dorado , Shangri-La , Lemuria , Avalon , Agharta , etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.  8 episódios repletos de desinformação científica A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos.  "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos , pathos e logos —...

Novichok em UK

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Impressionante. "The Salisbury Poisonings" (2020) é uma dramatização do ataque da Rússia a Inglaterra com um Agentes de Nervos ( Novichok ), em Março de 2018, dois meses antes do Mundial de 2018 na Rússia, para assassinar dois espiões. Impressionante porque não morreram apenas dois espiões, morreu uma cidadã britânica, ficaram debilitadas mais uma série de pessoas inglesas, outras perderam as suas casas que se tornaram inutilizáveis por ser impossível limpar o agente, e se não tivesse havido todo um controlo altamente eficaz da difusão do agente, com encerramento de zonas inteiras da cidade de Salisbury ao longo de mais de um ano poderiam ter morrido centenas ou milhares de pessoas. Os custos de reação ao uso de um simples frasco de perfume com o agente, além das mortes e vidas desfeitas, terá custado vários milhões. Em 2019 a Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons adicionou este agente à lista de armas proibidas. Tardiamente, porque foram precisas várias décad...

“Scavengers Reign”, a estranheza da criatividade

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“Scavengers Reign” (2023), numa tradução livre, O Reino dos Necrófagos , é uma série, simultaneamente, estranha, criativa, excêntrica, adorável, bizarra e tranquila. Perdidos num outro planeta, como numa ilha isolada, somos confrontados com toda uma outra biologia, fortemente evolucionária, simbiótica e sistémica que assusta ao mesmo tempo que vai sendo reconhecível e nos reconforta. A atmosfera, criada pela dupla Joseph Bennett e Charles Huettner, entra no género da chamada Weird Fiction , mais concretamente no domínio da Weird Biology , fugindo do clássico horror (H. P. Lovecraft) para adotar uma visão mais exótica, que mescla o desconforto do novo e diferente com a calma e curiosidade da inquisição e descoberta, um pouco mais na linha do trabalho de Jeff VanderMeer, mais conhecido pela trilogia “The Southern Reach”, com o primeiro livro, “Annihilation” (2014), adaptado ao cinema (2018) por Alex Garland. Várias versões do poster da série criadas por  Charles Huettner “Scavengers...

Guerra dos Mundos (2019)

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Nunca fui grande fã da "Guerra dos Mundos" (1897) de H. G. Wells, apesar de ter achado interessante a dramatização homónima (1938) para rádio de Orson Welles, mais pelo impacto social que produziu . Depois, os filmes homónimos de Byron Haskin (1953) e Steven Spielberg (2005) , também pouco me disseram. A razão principal para este meu desligamento tem que ver com o enfoque total no evento, a chegada de extra-terrestres inimigos, e nas suas consequências macro para a humanidade, sem haver uma efetiva dramatização, ou seja, uma perspectiva humana recortada de modo a permitir a nossa inclusão dentro do mundo. Na verdade, julgo que essa perspectiva faltou na obra original e suas adaptações pelo facto de se ter optado por manter um manto de desconhecido sobre os extra-terrestres. Ou seja, se não sabemos nada sobre eles, torna-se impossível criar variabilidade dramática nos humanos, uma vez que em face do desconhecido o humano só pode reagir pelo medo. Não havendo estímulos à signi...