Anatomia de um casal
“Anatomie d'une Chute" (Anatomy of a Fall / Anatomia de uma Queda) (2023), de Justine Triet, é um filme de grande intensidade psicológica, com um trabalho de direção, escrita e performance capaz de o colocar ao nível da literatura mais erudita. Somos envolvidos numa trama de um processo de investigação sobre a queda de um marido, do alto de uma janela, que se nos oferece com duas possibilidades de resposta: suicídio ou assassinato pela esposa. Contudo, essa trama interessa apenas à superfície, já que aquilo que está verdadeiramente em análise é o casamento entre dois escritores e um filho (11) que perdeu a visão num acidente. Ao longo de duas horas tentamos descobrir, por entre um novelo de suspeitas e possibilidades, o que terá acontecido, mas enquanto o fazemos aprofundamos o nosso conhecimento do casal e das personalidades de cada um. A obra apresenta um trabalho impressionante com um guião marcado por descrições minimalistas entrecortadas por diálogos profundos a rasar a meta-análise da relação, oferecendo momentos de puro deleite pelo alcance do que se consegue expressar, nomeadamente pelo trabalho de Sandra Hüller. A atriz não se transforma apenas ao longo do filme, ela apresenta toda uma gama de facetas, rigorosamente controladas pela direção, servindo o guião e expandindo todo o significado da experiência do filme.
É uma tragédia moderna no seio de um casal que apesar de ter quase tudo, vive angustiado por não conseguir cumprir com a auto-imposição de ter que ir além da sua condição criativa. Um dos membros, com mais sucesso, parece adaptar-se melhor do que o outro, que não consegue chegar sequer a finalizar as obras que começa. A tensão que se gera é assim ao nível do suporte à realização individual, das necessidades pessoais, mas também das ideias pré-formatadas sobre como deve funcionar um casal, qual o lugar de cada um, e como cada um se impõe ao outro. Surgem acusações de falta de apoio, de frieza, do lado mais pragmático, contra o excesso de auto-comiseração e falta de auto-estima, do lado mais inseguro. Tudo condições que perfazem a condição de casal e que para muitos abrem portas de grande empatização, com a particularidade dos papéis tradicionais estarem invertidos, o homem é aqui o elo mais frágil.
A ideia talvez mais inovadora deste drama conjugal surge pela presença do filho e do acidente que lhe conferiu a cegueira. A criança, apesar da sua condição, demonstra uma enorme autonomia e vitalidade, o que lhe permite remar contra a maré tsunami dos egos dos pais. No entanto, o filme eleva-se ao colocar a criança presente em tribunal durante todo o desvelar do funcionamento do casamento, permitindo à criança crescer e apresentar toda uma postura de enorme consideração pelas diferenças dos pais, garantindo ao espectador uma perspectiva não crítica das culpas de cada um dos progenitores.
Saliento ainda um detalhe técnico na direção de Triet, que usa de um contraste entre o ritmo calmo e distante do guião juntamente com os sentires altamente contidos dos personagens; e um ritmo acelerado, conferido pela montagem rápida de grandes planos e diálogos curtos. Este contraste serve para criar um sentir geral de ambiguidade que o guião busca, já que não há respostas, apenas incertezas, mantendo assim o espectador sempre engajado, na busca por indícios que lhe permitam criar a sua própria resposta.
Acabei por ver duas vezes. A experiência é intensa, tão rica em termos perceptivos que uma segunda vez não lhe retira nada em termos de espanto e admiração. Vai para a minha lista dos melhores 30 filmes de sempre.
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