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A House of Dynamite (2025)

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No início, parece mais um filme sobre crise nuclear. O presidente, o estado-maior, os protocolos, os ecrãs. Acreditamos que vai haver uma decisão. Que alguém vai fazer o que é certo. É isso que o cinema nos ensinou: há sempre uma solução. Mas A House of Dynamite vai desmontando essa crença, plano a plano, até restar só o vazio. A certa altura percebemos que nada do que fizerem importa. Que lançar ou não lançar é o mesmo. Que a defesa é uma ilusão moral. E é nesse momento que o filme deixa de ser ficção e passa a realidade sem disfarce. O mundo pode acabar com um míssil, e ninguém pode travá-lo. Não há tempo, não há sistema, não há escudo. A civilização inteira depende da sanidade de quem carrega num botão. O vice-presidente telefona à filha e não diz nada. Esse silêncio é o retrato da verdade: já não há o que dizer. E depois põe fim à lucidez. Porque compreende que a vida, a família, o país, tudo o que o definia, deixou de ter relevância. O futuro já não existe. Bigelow não most...

Task (2025)

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Há séries que começam bem demais. O primeiro episódio de Task (2025) pertence a essa categoria: uma narrativa que se basta a si mesma, um conto trágico de 60 minutos que nos preenche por completo . Tudo está ali: o erro fatal, a culpa, o amor deformado, a fé perdida e a tentativa impossível de redenção. Robbie, o irmão de rosto angelical, é o centro emocional, um homem que acredita agir por justiça e acaba a destruir o que queria salvar. A sua expressão de pureza faz dele um anjo em queda, o espelho invertido do agente vivido por Mark Ruffalo, cuja contenção é penitência. Juntos, encenam o conflito eterno entre a lei e a compaixão, o cálculo e o impulso. Quando Robbie leva o miúdo para casa, na cena final, a série atinge o sublime trágico . A luz é fria, o silêncio pesa, e cada movimento parece carregado de um significado moral que excede as palavras. Nesse instante, o espectador percebe: tudo o que importa já foi dito. É o hamartia aristotélico, a falha que revela a alma. O proble...

Chuva Pesada, (1966), Don Carpenter

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Há livros que parecem destinados a entrar no cânone e, no entanto, ficam à porta.  Chuva Pesada  é um desses casos, admirado, citado, mas raramente amado. A leitura é envolvente e contínua. Seguimos Jack como quem observa uma mente em movimento, tentando perceber o que o conduz, o que pensa, o que o impede de parar. Há uma coerência narrativa que prende e cria expectativa, como se algo decisivo estivesse sempre prestes a acontecer. Mas esse momento nunca chega. Carpenter constrói Jack não como uma personagem, mas como uma persona,  uma figura pensada para representar um tipo de homem. O problema é que, quando o leitor não se reconhece nesse tipo, a identificação quebra-se. Jack, órfão, ladrão, alcoólico, boxista, prisioneiro, acumula experiências, mas não ganha espessura. Acompanhamos o percurso, mas não sentimos proximidade. Quando Carpenter tenta transformá-lo num homem culto, interessado em Dostoiévski e na ópera, o texto perde verosimilhança. A reflexão filosófica s...

Pés de Barro, (2025), Nuno Duarte

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O romance de estreia de Nuno Duarte, vencedor do Prémio LeYa 2024, abre com a força rara de quem parece dominar a frase longa como poucos. A oralidade ritmada, a torrente de factos e a energia descritiva criam um efeito de fluxo contínuo que arrasta o leitor. É uma escrita de cadência popular, quase falada, com o vigor das grandes vozes narrativas da oralidade. À primeira leitura, Pés de Barro impressiona. Soa a novo, a ousado. Parece dar corpo, finalmente, a um quotidiano português raramente representado com tal vitalidade. Mas a torrente, que se apresenta como espontânea, é na verdade um exercício de construção documental . Duarte compõe o seu fluxo a partir de enxertos: efemérides, acidentes, notícias, referências históricas, slogans de época. Tudo entra — o desastre do Cais do Sodré, o incêndio do Teatro D. Maria, a morte de JFK, os Beatles, o “nosso Vietname”, o Sporting na Taça das Taças. É uma sucessão de acontecimentos colados de fora para dentro, um inventário onde o efeito e...

Les Indésirables, a tragédia da interdependência

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O mais recente filme de Ladj Ly,  Les Indésirables (2023), quer denunciar a indiferença do Estado francês, mas o que acaba por mostrar é mais complicado do que parece. A história passa-se num prédio em ruína, habitado por famílias pobres e imigrantes. Ly culpa a Câmara e o novo presidente, mas o que se vê no ecrã vai além da má gestão pública: é a decomposição de um espaço que perdeu o sentido de comunidade. As paredes partidas, os corredores vandalizados, o lixo acumulado, nada disso é apenas culpa do poder. É também o reflexo de um colapso simbólico: pessoas vindas de países diferentes, sem laços nem memória comum, que foram ali encaixadas e deixadas a sobreviver lado a lado. E quando não há sentimento de pertença, o “comum” deixa de ser de todos, passa a ser de ninguém. Ly mostra a revolta justa dos moradores, mas não compreende o outro lado: o da França pobre e de classe média, que também luta, também paga, e sente que o Estado protege uns e esquece outros. É aqui que nasce a ...

A Parede (1963), engenharia de solidão

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Quando comecei A Parede , pensei que era um romance sobre o Muro de Berlim . A coincidência temporal — início dos anos 60 — e o título pareciam apontar para isso. Mas rapidamente percebi que o muro de Marlen Haushofer é outro: não separa ideologias, separa a espécie do resto da vida. E o que encontrei não foi um panfleto político nem um manifesto feminista, mas uma experiência biológica da consciência. Um laboratório do isolamento humano. A parede funciona como um dispositivo narrativo simples, quase de ficção científica: uma mulher fica subitamente sozinha, cercada por uma barreira invisível. Mas esse pretexto rapidamente se desfaz. Haushofer não escreve uma aventura de sobrevivência como Robinson Crusoé  (1719) escreve o diário de alguém que se tornou prisioneira da própria existência. Onde Defoe procurava reconstruir a civilização, ela busca apenas manter-se viva, e lúcida. É uma robinsonada desprovida de fé no progresso, em que a conquista é substituída pela observação, e a ...

Hors-saison (2023)

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Há filmes que só se compreendem depois da meia-idade. Hors-saison , de Stéphane Brizé, pertence a esse território reservado aos que já amaram, perderam e voltaram a ver o amor de frente, com a serenidade de quem já não espera nada. O filme fala na língua do depois, depois da paixão, depois da raiva, depois do tempo ter feito o seu trabalho silencioso. Hors-Saison , foi traduzido para Portugal como A Vida Entre Nós Durante a primeira metade, a música de Vincent Delerm parece querer ocupar espaço demais, como se Brizé desconfiasse da força do silêncio. Mas quando o reencontro amadurece e o que estava contido começa a vibrar, a música deixa de ser excesso para se tornar respiração. Cada nota traduz o que já não pode ser dito; a emoção muda de plano, e somos levados por ela sem defesa possível. Ele é o centro narrativo, mas é através dela, Alice, que vemos tudo. O olhar feminino absorve o mundo, e é nele que o espectador adulto se reconhece. Ele carrega a culpa; ela, a lucidez. Entre os d...

O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox (2006)

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The Vanishing Act of Esme Lennox (2006)  foi o quinto livro de Maggie O’Farrell que li. Tendo começado pelo fulgor de  Hamnet (2020) , seguido pela sumptuosidade de  The Marriage Portrait  (2022) , pelo realismo à pele de I Am, I Am, I Am (2017) , e até pela ousadia formal da sua estreia em After You’d Gone (2000) , cheguei a este romance de 2006 com expectativas elevadas. A premissa é fortíssima — uma mulher injustamente internada durante décadas — e bastaria, por si só, para dar corpo a um grande livro. Mas O’Farrell não confia nesse núcleo e, em vez de o explorar até às últimas consequências, enche a narrativa de camadas suplementares, traços dramáticos que se vão acumulando e que, em excesso, soam artificiais. O resultado é um texto que se lê com facilidade, porque está sempre a oferecer segredos, pequenas revelações, reviravoltas, mas que no fim deixa pouco atrás de si. Há aqui técnicas que parecem sofisticadas: as vozes fragmentadas, as elipses, os saltos temp...

Da encenação do preto e branco

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Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

A Mulher da Areia (1962)

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Kōbō Abe colocou um homem num buraco de areia e deixou-o ali por trezentas páginas. A premissa é poderosa: um professor de Tóquio enganado por aldeões, preso numa casa que precisa ser escavada todas as noites para não desaparecer sob a areia. É impossível não pensar em Camus, Kafka ou Beckett — todos eles a dizerem-nos que a vida é um círculo repetitivo sem saída. Mas onde Camus encontra clareza filosófica e Beckett arranca humor negro do vazio, Abe entrega-nos apenas areia, sempre a mesma, noite após noite.

A bofetada de Isabela Figueiredo

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Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Entre Sísifo e os ex-amantes

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Ana Moreau canta Les Exs  (2023) como quem se expõe num recado deixado ao acaso, a voz trémula, as palavras presas a uma dor que insiste em não desaparecer. Não há drama grandioso, apenas a persistência íntima de um coração que não aceita morrer. A narrativa que se constrói é feita de fragmentos quotidianos, lençóis trocados, parceiros novos, números marcados por reflexo, e de uma verdade subterrânea: por mais que a vida avance, o amor não se apaga, instala-se num canto escondido e continua a vibrar. O refrão repete como uma ética simples: “faut juste continuer d’aimer, différemment.” Não é o fim, é transformação.

Excesso como Estilo

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Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda  (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Casa na Duna (1943)

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Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva . E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

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O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.

Crossing (2024)

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Realismo total. Duro. Melancólico. Perfurante. Humano. Saí do filme com aquela sensação rara de ter atravessado um mundo que não se exibe, mas se oferece, como se tivesse sido convidado a caminhar, em silêncio, ao lado das personagens.

Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa

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Comecei a leitura de Kokoro  , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir.

Mala letra, livro de contos

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"Mala letra"  (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade.

La madre de Frankenstein (2020)

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Vim para La madre de Frankenstein atraído pela promessa de um romance histórico sólido, centrado na figura de Aurora Rodríguez Carballeira, uma mulher real cuja vida e crime têm peso trágico. Conhecia o seu caso e via nele potencial para um mergulho na psiquiatria do século XX, no contexto do franquismo, e numa reflexão séria sobre a loucura feminina e as estruturas de poder que a oprimiram. Esperava densidade histórica, complexidade psicológica e coragem narrativa.

"Ainda Estou Aqui", por detrás do vidro

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Vi ontem Ainda Estou Aqui e saí do filme com duas certezas: Walter Salles continua a ser um mestre a contar histórias e, ao mesmo tempo, há um vidro quase transparente que nunca me deixou entrar completamente naquela vida. Comecemos pelo que o filme tem de mais forte. A fotografia e a direção de arte são magníficas, cada plano tem a densidade certa, cada cor parece escolhida para permanecer depois na memória. A cinematografia e a montagem são de uma precisão impressionante: nada sobra, nada falta, o ritmo é sereno mas firme. As interpretações estão à altura. Fernanda Torres constrói um arco dramático completo, sem atalhos nem exageros, e todo o elenco secundário mantém a mesma contenção. A música, assinada por Warren Ellis, é tão contida quanto o resto do filme, discreta, mas presente nos momentos exatos, a sustentar a emoção sem jamais a manipular. Mas o que mais me prendeu foi o guião. Salles entende a força de não mostrar. Não há lágrimas fáceis, não há cenas explicativas em ...