Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Literatura

Contos dos Subúrbios (2025) de Karim Vali

Imagem
" Contos dos Subúrbios" não se impõe por surpresa, mas por nitidez. A escrita de Karim Vali é limpa, controlada, muitas vezes elegante, uma escrita que sabe o que está a fazer e onde se posiciona. Cada conto avança com segurança, sustentado por uma consciência clara do mundo contemporâneo e das suas fraturas: identidade, pertença, desigualdade, olhar social. O que se reconhece de imediato no livro é a sua capacidade de falar de vidas correntes, de pessoas que atravessam o quotidiano carregando um peso interior constante, raramente nomeado. A atenção está aqui focada na experiência subjetiva daqueles que vivem nos interstícios, entre classes, entre identidades. Não é uma atenção sensacionalista; é reflexiva.  A escrita de Vali é profundamente consciente do seu tempo. Tudo é depurado em conceitos e categorias, a ponto de, por vezes, o real já se apresentar como explicação. O sofrimento, o desconforto, surgem filtrados por uma grelha interpretativa, quase demasiado sólida. O le...

A Leste do Paraíso (1952) de John Steinbeck

Imagem
"A Leste do Paraíso", de John Steinbeck, opera sobre uma falha monumental. A narrativa assenta numa leitura direta do mito bíblico de Caim e Abel — um mito que nunca considerei intelectualmente sustentável: Deus escolhe Abel, não explica porquê; Caim reage e torna-se o culpado absoluto. Narrativamente, isto é um erro básico. Eticamente, é um crime simbólico. Personagens sem motivações compreensíveis, ações sem causa explicada e uma moral arbitrária imposta por autoridade — não construída por experiência humana — ensinam apenas que a exclusão pode ser arbitrária, que a culpa pode preceder a ação e que um ser humano não precisa de ser compreendido para ser condenado. Steinbeck transpõe este modelo para um romance que se apresenta como realista, mas o resultado é profundamente frágil: personagens que são boas ou más “porque sim”, um mal tratado como essência e não como processo, e um conflito humano reduzido a alegoria infantil. Não encontro aqui realismo, nem naturalismo, ...

Os Despojos do Dia (1989) de Kazuo Ishiguro

Imagem
"The Remains of the Day" (1989), de Kazuo Ishiguro, é um livro que comecei a ler com muita abertura. Queria entrar na cabeça do personagem e compreender o mundo a partir do seu lugar. Não tinha qualquer intuição de falhas. Pelo contrário: durante o primeiro terço, não tive qualquer dúvida da enorme qualidade. Stevens é meticuloso, reflexivo, vive intensamente dentro da cabeça, algo que reconheço bem. Mas à medida que a leitura avançava, comecei a sentir um desconforto difícil de ignorar. O livro não me estava a pedir apenas uma empatia exigente ou incómoda; estava a pedir algo mais problemático: que eu aceitasse como humano um sujeito cuja relação com o sofrimento começava a parecer estranhamente inexistente. Só mais tarde percebi que o problema não era de contenção emocional. Stevens não é um homem reprimido. É um homem imune ao sofrimento. E é aí que tudo começa a falhar. O humano que não paga preço Ao longo do romance, Stevens atravessa acontecimentos que, em qualquer ser...

Do Lado Dela (1949) de Alba de Céspedes

Imagem
Entrei em " Dalla Parte di Lei " (1949) com muita sede. Gosto muito de Alba de Céspedes e considero O Caderno Proibido  (1952) um dos meus livros preferidos de sempre. Por isso quis dar a este romance a mesma atenção. E dei. Mas acabei frustrado — não por falta de talento da autora, mas por um artifício narrativo que me parece, ao mesmo tempo, inteligente e problemático. Audiolivro narrado por Carlotta Brentan, a partir da tradução de  Jill Foulston Primeiro, uma correção importante: eu cheguei a pensar que este seria um romance de estreia, ainda imaturo. Afinal não é. Foi publicado apenas três anos antes de O Caderno Proibido . Portanto, a complexidade já estava lá. O que muda aqui não é falta de capacidade. É uma escolha. O livro chama-se “ Do Lado Dela ”, em italiano; em português, ficou " Confissão ” e, em inglês, " O Lado Dela da História " . Nenhum destes títulos é inocente. Eles preparam o leitor para aceitar, desde o início, que isto não é “a verdade”,...

Big Kiss, Bye-Bye (2025) de Claire-Louise Bennett

Imagem
Há livros que não se lêem: instalam-se. Big Kiss, Bye-Bye  (2025) pertence a esse território raro onde a literatura não avança por enredo nem por personagens no sentido clássico, mas por presença. O que Bennett constrói aqui não é uma história sobre uma relação; é antes a exposição contínua da consciência em ação, lúcida, por vezes cruel, mas viva, sempre a pensar-se a si própria enquanto vive. Aquilo que mais rapidamente nos captura é a voz. Uma voz de oralidade insistente e auto‑correctiva, que não relata acontecimentos depois de pensados, mas pensa enquanto fala e fala enquanto pensa. Não existe aqui a distância confortável entre a experiência e a linguagem. O texto nasce no mesmo plano em que a experiência se forma. As frases avançam com hesitações, desvios, e correções como método. Não se trata de fluxo de consciência, nem de fragmentação; trata‑se antes de uma consciência que se observa a si própria em tempo real. Um dos momentos mais intensos do livro — um longo monólogo int...

Hyperion (1989), com uma visão particular da IA

Imagem
"Hyperion" , (1989),  de Dan Simmons, é ficção científica que não procura ser coerente nem imediatamente compreensível. Em vez disso, propõe um universo de estranheza total: neologismos, planetas indecifráveis, entidades mecânicas que ultrapassam o simbólico, e uma política interplanetária que parece surgida de um sonho febril. Mas que funciona, e muito bem.  O primeiro impacto é o da densa arquitetura do desconhecido . Simmons cria um universo que nunca está inteiramente ao nosso alcance, e quer que assim seja. Percebemos que há coerência interna, há um plano, há um mundo firme por detrás das palavras. Mas esse mundo não se abre de imediato. Requer rendição, paciência, e a aceitação de que grande parte do fascínio está precisamente naquilo que não compreendemos . Baseado na estrutura dos " Canterbury Tales " , (1892) de Geoffrey Chaucer, o romance divide-se em seis narrativas contadas pelos peregrinos que se dirigem aos Túmulos do Tempo. É aqui que reside o maior ...

La Maison vide (2025)

Imagem
Há escritores que nos surpreendem pela capacidade de inventar mundos; Laurent Mauvignier surpreende, antes de mais, pela forma como nos faz entrar dentro de consciências frágeis, quebradas, e pela coragem de nos manter ali, nesse interior ferido, o tempo suficiente para que reconheçamos algo de nosso. " La Maison vide" (2025) , que li agora depois de " Histoires de la nuit"  (2020) e de "Continuer" (2016) , confirma aquilo que já suspeitava: há, na obra de Mauvignier, uma arte particular de fazer literatura a partir da tensão interior, uma maneira de escavar a vida emocional que poucos conseguem com esta profundidade. O impacto veio em três etapas. Histoires de la nuit foi a primeira explosão: um romance que é, ao mesmo tempo, thriller , tragédia e estudo sobre o silêncio social. Continuer revelou outro lado, uma relação mãe-filho atravessada por ressentimento e ternura, escrita com vibração entre dois interiores que não se conseguem tocar. Mas "La...

Proust, roman familial (2023), Laure Murat

Imagem
Há uma aristocracia francesa que sobreviveu à Revolução sem nunca verdadeiramente cair. Não desapareceu: adaptou-se. Conservou títulos, rituais e, acima de tudo, uma forma de estar onde tudo se decide na superfície: nos modos, na contenção, na etiqueta, que funcionam como código moral. Laure Murat nasceu dentro desse mundo. É a partir dessa origem que escreve " Proust, roman familial" (2023). O livro não é um estudo académico sobre " A la Recherche du Temps Perdu " (1913-1927). É mais íntimo e mais incisivo: Murat lê Proust a partir da ferida de ter pertencido ao mesmo universo que ele descreveu e criticou. E, ao fazê-lo, mostra que a aristocracia francesa não é um resquício do passado, mas uma forma de vida ainda ativa, estrutural, discreta e eficaz. A ideia central é simples e terrível: na aristocracia, a vida não se vive, representa-se.  A imagem é a lei. A intimidade, o desejo, o sofrimento, a identidade, tudo deve permanecer dentro do quadro previamente defini...

Olhem Para Mim (1983), Anita Brookner

Imagem
No quarto capítulo de "Look at Me", quase desisti. Havia detalhe a mais, descrição a mais, e eu sentia que a história se perdia na observação do insignificante. Mas continuei e, sem perceber bem quando, comecei a querer voltar àquele mundo. Um mundo pequeno, contido, quase imóvel. Um terrário de emoções: tudo o que acontece lá dentro está delimitado e, por isso mesmo, seguro. Anita Brookner constrói o mundo como quem organiza uma casa demasiado silenciosa; cada gesto, cada frase estão no sítio certo; com um ar é espesso, de contenção. Frances Hinton, a narradora, é uma mulher que vive rodeada de outros e, ainda assim, à margem. Observa-os, descreve-os, tenta compreendê-los. É através dessa observação obsessiva que sobrevive à ausência da chamada vida vivida. O que antes me cansava — o detalhe — acabou por se tornar a própria razão da minha admiração. Brookner não descreve para enfeitar: descreve para existir. O olhar é o corpo da sua personagem. E é por isso que "Look at...

Task (2025), Brad Ingelsby

Imagem
Há séries que começam bem demais. O primeiro episódio de Task (2025) pertence a essa categoria: uma narrativa que se basta a si mesma, um conto trágico de 60 minutos que nos preenche por completo . Tudo está ali: o erro fatal, a culpa, o amor deformado, a fé perdida e a tentativa impossível de redenção. Robbie, o irmão de rosto angelical, é o centro emocional, um homem que acredita agir por justiça e acaba a destruir o que queria salvar. A sua expressão de pureza faz dele um anjo em queda, o espelho invertido do agente vivido por Mark Ruffalo, cuja contenção é penitência. Juntos, encenam o conflito eterno entre a lei e a compaixão, o cálculo e o impulso. Quando Robbie leva o miúdo para casa, na cena final, a série atinge o sublime trágico . A luz é fria, o silêncio pesa, e cada movimento parece carregado de um significado moral que excede as palavras. Nesse instante, o espectador percebe: tudo o que importa já foi dito. É o hamartia aristotélico, a falha que revela a alma. O probl...

Chuva Pesada (1966), Don Carpenter

Imagem
Há livros que parecem destinados a entrar no cânone e, no entanto, ficam à porta.  Chuva Pesada  é um desses casos, admirado, citado, mas raramente amado. A leitura é envolvente e contínua. Seguimos Jack como quem observa uma mente em movimento, tentando perceber o que o conduz, o que pensa, o que o impede de parar. Há uma coerência narrativa que prende e cria expectativa, como se algo decisivo estivesse sempre prestes a acontecer. Mas esse momento nunca chega. Carpenter constrói Jack não como uma personagem, mas como uma persona,  uma figura pensada para representar um tipo de homem. O problema é que, quando o leitor não se reconhece nesse tipo, a identificação quebra-se. Jack, órfão, ladrão, alcoólico, boxista, prisioneiro, acumula experiências, mas não ganha espessura. Acompanhamos o percurso, mas não sentimos proximidade. Quando Carpenter tenta transformá-lo num homem culto, interessado em Dostoiévski e na ópera, o texto perde verosimilhança. A reflexão filosófica s...

Pés de Barro (2025), Nuno Duarte

Imagem
O romance de estreia de Nuno Duarte, vencedor do Prémio LeYa 2024, abre com a força rara de quem parece dominar a frase longa como poucos. A oralidade ritmada, a torrente de factos e a energia descritiva criam um efeito de fluxo contínuo que arrasta o leitor. É uma escrita de cadência popular, quase falada, com o vigor das grandes vozes narrativas da oralidade. À primeira leitura, Pés de Barro impressiona. Soa a novo, a ousado. Parece dar corpo, finalmente, a um quotidiano português raramente representado com tal vitalidade. Mas a torrente, que se apresenta como espontânea, é na verdade um exercício de construção documental . Duarte compõe o seu fluxo a partir de enxertos: efemérides, acidentes, notícias, referências históricas, slogans de época. Tudo entra — o desastre do Cais do Sodré, o incêndio do Teatro D. Maria, a morte de JFK, os Beatles, o “nosso Vietname”, o Sporting na Taça das Taças. É uma sucessão de acontecimentos colados de fora para dentro, um inventário onde o efeito e...

A Parede (1963), engenharia de solidão

Imagem
Quando comecei A Parede , pensei que era um romance sobre o Muro de Berlim . A coincidência temporal — início dos anos 60 — e o título pareciam apontar para isso. Mas rapidamente percebi que o muro de Marlen Haushofer é outro: não separa ideologias, separa a espécie do resto da vida. E o que encontrei não foi um panfleto político nem um manifesto feminista, mas uma experiência biológica da consciência. Um laboratório do isolamento humano. A parede funciona como um dispositivo narrativo simples, quase de ficção científica: uma mulher fica subitamente sozinha, cercada por uma barreira invisível. Mas esse pretexto rapidamente se desfaz. Haushofer não escreve uma aventura de sobrevivência como Robinson Crusoé  (1719) escreve o diário de alguém que se tornou prisioneira da própria existência. Onde Defoe procurava reconstruir a civilização, ela busca apenas manter-se viva, e lúcida. É uma robinsonada desprovida de fé no progresso, em que a conquista é substituída pela observação, e a ...

O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox (2006)

Imagem
The Vanishing Act of Esme Lennox (2006)  foi o quinto livro de Maggie O’Farrell que li. Tendo começado pelo fulgor de  Hamnet (2020) , seguido pela sumptuosidade de  The Marriage Portrait  (2022) , pelo realismo à pele de I Am, I Am, I Am (2017) , e até pela ousadia formal da sua estreia em After You’d Gone (2000) , cheguei a este romance de 2006 com expectativas elevadas. A premissa é fortíssima — uma mulher injustamente internada durante décadas — e bastaria, por si só, para dar corpo a um grande livro. Mas O’Farrell não confia nesse núcleo e, em vez de o explorar até às últimas consequências, enche a narrativa de camadas suplementares, traços dramáticos que se vão acumulando e que, em excesso, soam artificiais. O resultado é um texto que se lê com facilidade, porque está sempre a oferecer segredos, pequenas revelações, reviravoltas, mas que no fim deixa pouco atrás de si. Há aqui técnicas que parecem sofisticadas: as vozes fragmentadas, as elipses, os saltos temp...

Da encenação do preto e branco

Imagem
Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

A Mulher da Areia (1962)

Imagem
Kōbō Abe colocou um homem num buraco de areia e deixou-o ali por trezentas páginas. A premissa é poderosa: um professor de Tóquio enganado por aldeões, preso numa casa que precisa ser escavada todas as noites para não desaparecer sob a areia. É impossível não pensar em Camus, Kafka ou Beckett — todos eles a dizerem-nos que a vida é um círculo repetitivo sem saída. Mas onde Camus encontra clareza filosófica e Beckett arranca humor negro do vazio, Abe entrega-nos apenas areia, sempre a mesma, noite após noite.

A bofetada de Isabela Figueiredo

Imagem
Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Excesso como Estilo

Imagem
Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda  (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Casa na Duna (1943)

Imagem
Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva . E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

Imagem
O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.