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O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox (2006)

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The Vanishing Act of Esme Lennox (2006)  foi o quinto livro de Maggie O’Farrell que li. Tendo começado pelo fulgor de  Hamnet (2020) , seguido pela sumptuosidade de  The Marriage Portrait  (2022) , pelo realismo à pele de I Am, I Am, I Am (2017) , e até pela ousadia formal da sua estreia em After You’d Gone (2000) , cheguei a este romance de 2006 com expectativas elevadas. A premissa é fortíssima — uma mulher injustamente internada durante décadas — e bastaria, por si só, para dar corpo a um grande livro. Mas O’Farrell não confia nesse núcleo e, em vez de o explorar até às últimas consequências, enche a narrativa de camadas suplementares, traços dramáticos que se vão acumulando e que, em excesso, soam artificiais. O resultado é um texto que se lê com facilidade, porque está sempre a oferecer segredos, pequenas revelações, reviravoltas, mas que no fim deixa pouco atrás de si. Há aqui técnicas que parecem sofisticadas: as vozes fragmentadas, as elipses, os saltos temp...

Da encenação do preto e branco

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Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

A Mulher da Areia (1962)

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Kōbō Abe colocou um homem num buraco de areia e deixou-o ali por trezentas páginas. A premissa é poderosa: um professor de Tóquio enganado por aldeões, preso numa casa que precisa ser escavada todas as noites para não desaparecer sob a areia. É impossível não pensar em Camus, Kafka ou Beckett — todos eles a dizerem-nos que a vida é um círculo repetitivo sem saída. Mas onde Camus encontra clareza filosófica e Beckett arranca humor negro do vazio, Abe entrega-nos apenas areia, sempre a mesma, noite após noite.

A bofetada de Isabela Figueiredo

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Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Excesso como Estilo

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Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda  (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Casa na Duna (1943)

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Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva . E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

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O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.

Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa

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Comecei a leitura de Kokoro  , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir.

Mala letra, livro de contos

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"Mala letra"  (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade.

A Lucidez que Nos Quebra

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Não há forma de suavizar o que se segue. Yiyun Li é professora em Princeton e perdeu os dois filhos por suicídio (2018, 2024). E também não há como suavizar este livro. Things in Nature Merely Grow  (2025) é, antes de mais, um livro sobre a perda. Não a perda sentimental, aqui não há espaço para redenção. É a perda como dissolução da narrativa, como gesto radical de permanência no abismo. Yiyun Li não escreve para consolar, nem para explicar. Escreve para permanecer lúcida onde a maioria de nós se desfaria. Li apresenta um livro de análise profunda sobre o que quer dizer estar vivo, sobre o que quer dizer o suicídio, sobre a aceitação da vida tal como ela nos é entregue — sem adornos, sem promessas, sem sentido imposto. Aceitei esse pacto. Entrei no livro sabendo ao que ia, ou julgando saber. Disse a mim mesmo que acompanharia aquela lucidez até ao fim, mesmo sabendo que não seria confortável. Mas à medida que o livro avançava, sobretudo na segunda parte, quando Yiyun Li se detém ...

Tolstoy e o Desejo

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Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como " A Sonata a Kreutzer " (1889), de Lev Tolstói. "The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que conti...

A Mentira da Simetria

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"If only I’d known then that I was your mirror image" diz Katharina no epílogo de  Kairos  (2021) de Jenny Erpenbeck, como se essa frase final pudesse resgatar tudo o que ficou para trás. Hans — homem mais velho, manipulador, e, como se descobre no final, informador da STASI — é retratado sem crítica ao longo de uma relação profundamente desequilibrada. O Booker International Prize 2024 consagrou este livro como uma obra-prima da literatura europeia contemporânea. Mas para quem lê com atenção, a experiência termina com desilusão e frustração. Porque Kairos apresenta-se como um romance sobre a queda de um regime e o impacto disso nas relações íntimas, mas acaba por normalizar uma história de abuso emocional. Erpenbeck tem ambição formal e escreve com domínio técnico. Há momentos em que parece que o livro se vai transformar numa análise séria do entrelaçamento entre amor e poder, vigilância e desejo. Mas nas páginas finais, quando tudo devia ganhar clareza ou consequência...

Connemara (2022)

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Peguei no Connemara  (2022) de Nicolas Mathieu movido por uma nostalgia difícil de explicar. Talvez fosse a capa, que me fazia lembrar viagens, ou a vontade de revisitar o passado através das palavras de alguém que, como eu, parece ter percebido que a vida raramente corresponde aos sonhos que construímos. Logo nas primeiras páginas, senti que o livro me falava diretamente: o cansaço com o presente, a sensação de não ter chegado a lado nenhum, a ideia de que tudo aquilo que parecia tão importante na juventude acabou por se dissipar, transformando-se em recordações que resistem apenas pela força da memória. À medida que avançava na leitura, percebi que a única salvação que o autor nos dá — ou talvez o único consolo — é a possibilidade de regressar a esse lugar interior onde guardamos, entre fracassos e conquistas, as memórias que nos formaram. Um refúgio sentimental, onde, mesmo que tudo pareça desfeito, encontramos ainda algum conforto emocional. Foi isso que me agarrou ao livro, ma...

A Guardiã (2024)

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Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer.  A Guardiã (2024)  de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque  narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar. Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a ...

Contra Camus

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"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido. A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança. A geografia e a emoção de "Meursau...

Coragem ou Narcisismo

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Constance Debré, em Love Me Tender  (2020) apresenta-se numa performance literária de voz direta, crua e nua. A sua escrita é um soco, sem filtros, quase um choque para o leitor. A autora despe-se de qualquer pudor, expondo as suas dores e a sua luta pela liberdade com uma franqueza que desperta tanto admiração quanto desconforto. A radicalidade da sua prosa está na recusa absoluta da máscara, num movimento contínuo de desnudamento, que parece desafiar o leitor a manter o olhar. Debré é uma mulher que parece querer viver sem concessões, explorando o limite da autenticidade. Há, inicialmente, uma fascinação: queremos conhecer alguém capaz de se expor assim, de confessar sem medo os seus desejos, as suas escolhas, os seus fracassos. Mas, à medida que avançamos, começamos a sentir o peso da repetição. E o livro, mesmo sendo curto, torna-se circular, uma espiral de dor e desejo que se repete sem variação. É como se Debré estivesse presa num ritual de autossabotagem, onde cada novo amo...

Preferia Não o Fazer

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Durante anos, mantive uma distância cautelosa de Herman Melville. A leitura de "Moby Dick" (1851) deixou-me com a sensação de um autor excessivamente enredado em descrições prolixas e atmosferas densas, características que me afastaram do seu universo literário. No entanto, ao deparar-me com "Bartleby, o Escrivão" (1853), fui surpreendido por uma narrativa que se desvia radicalmente daquele estilo: direta, sucinta e despojada. A estranheza foi tal que tive de confirmar duas vezes se o autor era o mesmo.​ "Bartleby" apresenta-se como uma anomalia literária do século XIX, antecipando preocupações formais e temáticas que só viriam a ser plenamente exploradas no modernismo do século XX. A escrita de Melville aqui é contida, quase minimalista, contrastando com o seu estilo anterior. Esta mudança não é apenas estilística, mas reflete uma profunda transformação na abordagem do autor à narrativa e ao significado.​ Neste texto, proponho uma reflexão sobre como ...

Não-Humano (1948)

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Há livros que nos obrigam a confrontar o abismo da experiência humana, e há livros que apenas nos apontam esse abismo com indiferença. "Não-Humano", de Osamu Dazai, pretende ser o retrato cru da alienação moderna, mas o que encontrei foi antes o relato algo lânguido de uma existência parasitária, encenada com elegância mas vazia de verdadeiro impacto. A história gira em torno de Yozo, um jovem incapaz de se integrar na sociedade, desprovido de sentido existencial, movendo-se entre máscaras sociais, vícios e relações falhadas. Desde cedo se apresenta como alguém diferente, incompreendido, inadaptado – mas nunca se torna mais do que isso. O que poderia ser o ponto de partida para um confronto profundo com a condição humana transforma-se numa deriva repetitiva, onde o protagonista jamais se sujeita a um embate real com a vida. A escrita de Dazai é cuidada, por vezes até bela na sua secura. Mas o estilo nunca resgata a matéria: o protagonista não se constrói, não se revela, não s...

Atos Humanos (2014)

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Há livros que não se leem apenas — atravessam-nos. Atos Humanos, de Han Kang, é um desses livros. Terminei a leitura durante a semana que passou, mas ainda não me desliguei dele. Não é um romance que se devore; é um texto que se suporta, por vezes com dificuldade, como quem segura na mão um fragmento de memórias indigestas mas necessárias. Desconhecia os acontecimentos de Gwangju em 1980. Foi um choque. Sei o quão dificil tem sido a história da Coreia do Sul, desde a relação com o Japão, ao problema da divisão nunca sanada entre norte e sul, mas não tinha ideia das ditaduras que governaram o país nos anos mais recentes, e menos ainda desta violentíssimo golpe de Estado e de todo o horror que se lhe seguiu. A brutalidade da repressão, a frieza institucional, e sobretudo o apagamento deliberado da história. Ao dar corpo a essas vozes silenciadas, Han Kang transforma o romance numa forma de acusação e num veículo de memória coletiva. Se em A Vegetariana já se sentia uma escrita afiad...

A Parábola de Octavia E. Butler

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Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower  (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road  (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013) . Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros , viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas. Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilid...