Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Literatura

Task (2025)

Imagem
Há séries que começam bem demais. O primeiro episódio de Task (2025) pertence a essa categoria: uma narrativa que se basta a si mesma, um conto trágico de 60 minutos que nos preenche por completo . Tudo está ali: o erro fatal, a culpa, o amor deformado, a fé perdida e a tentativa impossível de redenção. Robbie, o irmão de rosto angelical, é o centro emocional, um homem que acredita agir por justiça e acaba a destruir o que queria salvar. A sua expressão de pureza faz dele um anjo em queda, o espelho invertido do agente vivido por Mark Ruffalo, cuja contenção é penitência. Juntos, encenam o conflito eterno entre a lei e a compaixão, o cálculo e o impulso. Quando Robbie leva o miúdo para casa, na cena final, a série atinge o sublime trágico . A luz é fria, o silêncio pesa, e cada movimento parece carregado de um significado moral que excede as palavras. Nesse instante, o espectador percebe: tudo o que importa já foi dito. É o hamartia aristotélico, a falha que revela a alma. O proble...

Chuva Pesada, (1966), Don Carpenter

Imagem
Há livros que parecem destinados a entrar no cânone e, no entanto, ficam à porta.  Chuva Pesada  é um desses casos, admirado, citado, mas raramente amado. A leitura é envolvente e contínua. Seguimos Jack como quem observa uma mente em movimento, tentando perceber o que o conduz, o que pensa, o que o impede de parar. Há uma coerência narrativa que prende e cria expectativa, como se algo decisivo estivesse sempre prestes a acontecer. Mas esse momento nunca chega. Carpenter constrói Jack não como uma personagem, mas como uma persona,  uma figura pensada para representar um tipo de homem. O problema é que, quando o leitor não se reconhece nesse tipo, a identificação quebra-se. Jack, órfão, ladrão, alcoólico, boxista, prisioneiro, acumula experiências, mas não ganha espessura. Acompanhamos o percurso, mas não sentimos proximidade. Quando Carpenter tenta transformá-lo num homem culto, interessado em Dostoiévski e na ópera, o texto perde verosimilhança. A reflexão filosófica s...

Pés de Barro, (2025), Nuno Duarte

Imagem
O romance de estreia de Nuno Duarte, vencedor do Prémio LeYa 2024, abre com a força rara de quem parece dominar a frase longa como poucos. A oralidade ritmada, a torrente de factos e a energia descritiva criam um efeito de fluxo contínuo que arrasta o leitor. É uma escrita de cadência popular, quase falada, com o vigor das grandes vozes narrativas da oralidade. À primeira leitura, Pés de Barro impressiona. Soa a novo, a ousado. Parece dar corpo, finalmente, a um quotidiano português raramente representado com tal vitalidade. Mas a torrente, que se apresenta como espontânea, é na verdade um exercício de construção documental . Duarte compõe o seu fluxo a partir de enxertos: efemérides, acidentes, notícias, referências históricas, slogans de época. Tudo entra — o desastre do Cais do Sodré, o incêndio do Teatro D. Maria, a morte de JFK, os Beatles, o “nosso Vietname”, o Sporting na Taça das Taças. É uma sucessão de acontecimentos colados de fora para dentro, um inventário onde o efeito e...

A Parede (1963), engenharia de solidão

Imagem
Quando comecei A Parede , pensei que era um romance sobre o Muro de Berlim . A coincidência temporal — início dos anos 60 — e o título pareciam apontar para isso. Mas rapidamente percebi que o muro de Marlen Haushofer é outro: não separa ideologias, separa a espécie do resto da vida. E o que encontrei não foi um panfleto político nem um manifesto feminista, mas uma experiência biológica da consciência. Um laboratório do isolamento humano. A parede funciona como um dispositivo narrativo simples, quase de ficção científica: uma mulher fica subitamente sozinha, cercada por uma barreira invisível. Mas esse pretexto rapidamente se desfaz. Haushofer não escreve uma aventura de sobrevivência como Robinson Crusoé  (1719) escreve o diário de alguém que se tornou prisioneira da própria existência. Onde Defoe procurava reconstruir a civilização, ela busca apenas manter-se viva, e lúcida. É uma robinsonada desprovida de fé no progresso, em que a conquista é substituída pela observação, e a ...

O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox (2006)

Imagem
The Vanishing Act of Esme Lennox (2006)  foi o quinto livro de Maggie O’Farrell que li. Tendo começado pelo fulgor de  Hamnet (2020) , seguido pela sumptuosidade de  The Marriage Portrait  (2022) , pelo realismo à pele de I Am, I Am, I Am (2017) , e até pela ousadia formal da sua estreia em After You’d Gone (2000) , cheguei a este romance de 2006 com expectativas elevadas. A premissa é fortíssima — uma mulher injustamente internada durante décadas — e bastaria, por si só, para dar corpo a um grande livro. Mas O’Farrell não confia nesse núcleo e, em vez de o explorar até às últimas consequências, enche a narrativa de camadas suplementares, traços dramáticos que se vão acumulando e que, em excesso, soam artificiais. O resultado é um texto que se lê com facilidade, porque está sempre a oferecer segredos, pequenas revelações, reviravoltas, mas que no fim deixa pouco atrás de si. Há aqui técnicas que parecem sofisticadas: as vozes fragmentadas, as elipses, os saltos temp...

Da encenação do preto e branco

Imagem
Há obras que me levam para territórios novos, e há outras que, mesmo estando muito perto dos meus temas de interesse, acabam por me deixar de fora. Foi o que aconteceu com Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule (2014) , de Édouard Louis, e com a sua adaptação livre ao cinema em Marvin ou la belle éducation (2017), de Anne Fontaine. O estranho é que, em teoria, ambos os objetos deveriam ter-me tocado a fundo: uma infância pobre, a violência familiar, a exclusão homofóbica, a fuga pela arte. Tudo elementos que reconheço como centrais e próximos daquilo que procuro compreender. Mas a leitura e a visualização não me deram verdade, deram-me encenação.

A Mulher da Areia (1962)

Imagem
Kōbō Abe colocou um homem num buraco de areia e deixou-o ali por trezentas páginas. A premissa é poderosa: um professor de Tóquio enganado por aldeões, preso numa casa que precisa ser escavada todas as noites para não desaparecer sob a areia. É impossível não pensar em Camus, Kafka ou Beckett — todos eles a dizerem-nos que a vida é um círculo repetitivo sem saída. Mas onde Camus encontra clareza filosófica e Beckett arranca humor negro do vazio, Abe entrega-nos apenas areia, sempre a mesma, noite após noite.

A bofetada de Isabela Figueiredo

Imagem
Isabela Figueiredo (n. 1963) nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, e veio para Portugal na adolescência, após o fim do colonialismo. O seu nome tornou-se conhecido com este " Caderno de Memórias Coloniais" (2009), um livro de memórias que rapidamente se tornou referência incontornável pela frontalidade com que abordou a herança colonial. Depois publicou os romances A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2021), confirmando-se como uma voz singular: direta, depurada, incisiva, capaz de revelar os mecanismos íntimos de poder e desejo nas relações humanas. Li primeiro  Um Cão no Meio do Caminho , e fiquei muito impressionado . Depois a  A Gorda,   tornou-me fã . Queria mais. Demorei a chegar a este Caderno porque pensava tratar-se de uma obra mais académica, estava totalmente enganado, e nada preparado para o que li.

Excesso como Estilo

Imagem
Comecei Ofuscante: A Asa Esquerda  (1996) com assombro. O primeiro capítulo foi uma revelação rara: senti que estava diante de uma escrita capaz de perfurar a realidade até ao núcleo. Bucareste, visto da janela de um quarto de adolescente, tornou-se corpo vivo; a cidade respirava como organismo, as luzes noturnas vibravam como vísceras, e a memória aparecia não como nostalgia, mas como ferida aberta. Foi, talvez, um dos inícios mais poderosos que já li, proustiano no mergulho, mas mais visceral, mais urbano, mais sujo e luminoso.

Casa na Duna (1943)

Imagem
Carlos de Oliveira publica Casa na Duna em 1943, dez anos antes de escrever Uma Abelha na Chuva . E percebe-se logo a diferença: este é um livro breve, ainda marcado por hesitações de tom, mas já com lampejos da voz maior que viria a surgir depois.

Mon vrai nom est Élisabeth (2025)

Imagem
O livro de Adèle Yon foi recebido em França com entusiasmo: premiado, celebrado, apresentado como obra de investigação íntima e de restituição histórica. A promessa era forte — dar voz a uma antepassada silenciada pela psiquiatria francesa do século XX. Baseado em arquivos familiares e defendido como tese de doutoramento, Mon vrai nom est Élisabeth chega ao leitor como documento e como literatura.

Kokoro, o silêncio, a moral e a culpa

Imagem
Comecei a leitura de Kokoro  , de Natsume Sōseki, com expectativa contida: sabia da reputação crítica, da reverência que a obra carrega na literatura japonesa moderna. O que não sabia, e talvez ninguém nos avise antes, é que se trata de um livro feito de adiamentos, de silêncios morais, de uma culpa que fermenta devagar até implodir.

Mala letra, livro de contos

Imagem
"Mala letra"  (2016), de Sara Mesa (1976), é um livro que entra sem pedir licença e deixa marcas. Onze contos curtos, secos e diretos, mas carregados de zonas de sombra, e é nessas zonas que a autora se move com mais liberdade.

A Lucidez que Nos Quebra

Imagem
Não há forma de suavizar o que se segue. Yiyun Li é professora em Princeton e perdeu os dois filhos por suicídio (2018, 2024). E também não há como suavizar este livro. Things in Nature Merely Grow  (2025) é, antes de mais, um livro sobre a perda. Não a perda sentimental, aqui não há espaço para redenção. É a perda como dissolução da narrativa, como gesto radical de permanência no abismo. Yiyun Li não escreve para consolar, nem para explicar. Escreve para permanecer lúcida onde a maioria de nós se desfaria. Li apresenta um livro de análise profunda sobre o que quer dizer estar vivo, sobre o que quer dizer o suicídio, sobre a aceitação da vida tal como ela nos é entregue — sem adornos, sem promessas, sem sentido imposto. Aceitei esse pacto. Entrei no livro sabendo ao que ia, ou julgando saber. Disse a mim mesmo que acompanharia aquela lucidez até ao fim, mesmo sabendo que não seria confortável. Mas à medida que o livro avançava, sobretudo na segunda parte, quando Yiyun Li se detém ...

Tolstoy e o Desejo

Imagem
Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como " A Sonata a Kreutzer " (1889), de Lev Tolstói. "The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que conti...

A Mentira da Simetria

Imagem
"If only I’d known then that I was your mirror image" diz Katharina no epílogo de  Kairos  (2021) de Jenny Erpenbeck, como se essa frase final pudesse resgatar tudo o que ficou para trás. Hans — homem mais velho, manipulador, e, como se descobre no final, informador da STASI — é retratado sem crítica ao longo de uma relação profundamente desequilibrada. O Booker International Prize 2024 consagrou este livro como uma obra-prima da literatura europeia contemporânea. Mas para quem lê com atenção, a experiência termina com desilusão e frustração. Porque Kairos apresenta-se como um romance sobre a queda de um regime e o impacto disso nas relações íntimas, mas acaba por normalizar uma história de abuso emocional. Erpenbeck tem ambição formal e escreve com domínio técnico. Há momentos em que parece que o livro se vai transformar numa análise séria do entrelaçamento entre amor e poder, vigilância e desejo. Mas nas páginas finais, quando tudo devia ganhar clareza ou consequência...

Connemara (2022)

Imagem
Peguei no Connemara  (2022) de Nicolas Mathieu movido por uma nostalgia difícil de explicar. Talvez fosse a capa, que me fazia lembrar viagens, ou a vontade de revisitar o passado através das palavras de alguém que, como eu, parece ter percebido que a vida raramente corresponde aos sonhos que construímos. Logo nas primeiras páginas, senti que o livro me falava diretamente: o cansaço com o presente, a sensação de não ter chegado a lado nenhum, a ideia de que tudo aquilo que parecia tão importante na juventude acabou por se dissipar, transformando-se em recordações que resistem apenas pela força da memória. À medida que avançava na leitura, percebi que a única salvação que o autor nos dá — ou talvez o único consolo — é a possibilidade de regressar a esse lugar interior onde guardamos, entre fracassos e conquistas, as memórias que nos formaram. Um refúgio sentimental, onde, mesmo que tudo pareça desfeito, encontramos ainda algum conforto emocional. Foi isso que me agarrou ao livro, ma...

A Guardiã (2024)

Imagem
Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer.  A Guardiã (2024)  de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque  narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar. Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a ...

Contra Camus

Imagem
"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido. A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança. A geografia e a emoção de "Meursau...

Coragem ou Narcisismo

Imagem
Constance Debré, em Love Me Tender  (2020) apresenta-se numa performance literária de voz direta, crua e nua. A sua escrita é um soco, sem filtros, quase um choque para o leitor. A autora despe-se de qualquer pudor, expondo as suas dores e a sua luta pela liberdade com uma franqueza que desperta tanto admiração quanto desconforto. A radicalidade da sua prosa está na recusa absoluta da máscara, num movimento contínuo de desnudamento, que parece desafiar o leitor a manter o olhar. Debré é uma mulher que parece querer viver sem concessões, explorando o limite da autenticidade. Há, inicialmente, uma fascinação: queremos conhecer alguém capaz de se expor assim, de confessar sem medo os seus desejos, as suas escolhas, os seus fracassos. Mas, à medida que avançamos, começamos a sentir o peso da repetição. E o livro, mesmo sendo curto, torna-se circular, uma espiral de dor e desejo que se repete sem variação. É como se Debré estivesse presa num ritual de autossabotagem, onde cada novo amo...