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O Outro que Desejamos Ser

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Nunca desejámos tanto deixar de ser quem somos. Nunca nos olhámos tanto ao espelho com a sensação de que nos faltava algo, de ter feito outras escolhas. Não sendo propriamente o desejo de felicidade que nos move, mas apenas o simples impulso de não continuar como estamos . A frase que abre o romance (ver abaixo) de David Foenkinos sintetiza algo mais vasto do que o drama privado de um casal: exprime o mal-estar de uma era que deixou de confiar na estabilidade dos vínculos, sejam eles afetivos, profissionais ou identitários. Já não vivemos em função de ideais duradouros, mas de pequenas tentativas de reconfiguração — como se a vida fosse um protótipo contínuo que vamos abandonando a cada falência emocional. “ Nunca antes uma época foi tão marcada pelo desejo de mudar de vida. ” Esse desejo de mudar — de casa, de cidade, de profissão, de corpo, de parceiro, de narrativa — não é sintoma de fragilidade. É um sinal desta época. Um modo de estar onde a separação é menos um evento e mais uma ...

O corpo que Homero não escreveu

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Hoje escrevi sobre Aquiles. Ontem, sobre Penélope, no Letterboxd . E percebi que não fazia sentido deixá-la fora deste espaço. Se há algo que Achilles  (2025) , dos Divine Comedy, e Return  (2024), de Uberto Pasolini, me revelaram nestes dois dias, foi isto: quanto mais o tempo passa, mais me apego à Ilíada e à Odisseia . Não pela fidelidade ao mito, mas porque neles encontro as origens do que ainda tentamos ser, e o contorno daquilo que só muito recentemente começámos a escrever. Return tenta o impossível: dar densidade psicológica e emocional a personagens que nunca foram concebidas para a ter. Juliette Binoche, como Penélope, traz à pele o peso do tempo e do silêncio. Ralph Fiennes, como Ulisses, regressa não como herói, mas como homem esvaziado pela guerra. O filme quer redimir o reencontro com uma complexidade humana que o mito nunca previu — e ao tentar, expõe aquilo que está ausente no coração da epopeia. A Odisseia é uma maravilha de estrutura, ritmo e tensão narr...

Achilles, ou a elegância da morte anunciada

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Nunca escrevi sobre canções neste espaço. Sempre associei o formato à fruição íntima e passageira, algo que se sente mas raramente se detém para ser desmontado. Mas de vez em quando surge uma exceção, uma canção que se impõe como texto, como narrativa plena, onde o tempo se dobra e os versos nos falam como personagens. Achilles (2025) , dos Divine Comedy , é uma dessas raras canções. Escrita e cantada por Neil Hannon, Achilles começa como uma elegia antiga. Um guerreiro contempla a morte de um amigo e promete vingança. Estamos em plena Ilíada , entre barcos queimados e deuses distraídos. Aquiles, Pátroclo, a cólera transformada em destino. A canção invoca esse universo mítico com sobriedade, sem grandiloquência, apenas sugerindo o peso trágico com versos contidos: “You slew my sweetest friend / His death will be avenged” . A música não se exalta — a orquestração embala. Como se dissesse: conhecemos este lamento há milhares de anos. O que surpreende é o salto seguinte. A segunda estro...

Tolstoy e o Desejo

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Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como " A Sonata a Kreutzer " (1889), de Lev Tolstói. "The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que conti...

A Cassandra da Casa Fechada

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Não saí bem deste filme. Fiquei chateado. Transtornado. Quase irritado. Não porque falhe, pelo contrário, talvez tenha sido demasiado eficaz. O que me perturbou foi a ausência de alento, de rutura, de qualquer abertura. O que me doeu foi ver Leila, que tinha tudo — energia, visão, lucidez — terminar soterrada num mundo que não a merecia. Fiquei magoado porque o filme não lhe deu o espaço de florir, de transformar, de desbravar o seu caminho. Sou um amante das histórias que mostram como se sai, como se cresce, como se transforma. E aqui, tudo ficou igual. Tudo permanece fechado. " Leila's Brothers " (2022), Saeed Roustayi Leila podia ter sido como Tara Westover , como tantas mulheres que desafiam a gravidade das suas origens e rompem com os códigos herdados. Mas não. Aqui, o que a impede não é um sistema político, nem uma ideologia fechada, é uma teia de afetos mal resolvidos, um emaranhado de culpas e dívidas emocionais, onde a incompetência masculina, não religiosa, não ...

Sentir antes de dizer

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O livro " Sentience: The Invention of Consciousness " (2022) de Nicholas Humphrey propõe uma explicação funcional da consciência que a aproxima de uma estratégia evolutiva de sobrevivência. A sua tese central distingue entre dois tipos de consciência — a cognitiva e a fenomenológica —, sendo esta última a que dá cor e textura à experiência de estar vivo. Humphrey descreve a consciência não como uma janela para o mundo, mas como um palco interno onde o organismo sente o impacto de estar no mundo. Viver, para Humphrey, é assum mais do que existir, é sentir.  Este ponto de partida, que aproxima a consciência da emoção, sugere uma base comum com autores como António Damásio (1994), para quem a consciência emerge do corpo e das emoções que regulam a sua homeostasia. No entanto, à medida que o livro avança, Humphrey hesita em assumir essa ligação plena. Quando se aproxima da animalidade ou do corpo como sede do sentir, recua para explicações adaptativas, evitando nomear a emoção....

A Mentira da Simetria

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"If only I’d known then that I was your mirror image" diz Katharina no epílogo de  Kairos  (2021) de Jenny Erpenbeck, como se essa frase final pudesse resgatar tudo o que ficou para trás. Hans — homem mais velho, manipulador, e, como se descobre no final, informador da STASI — é retratado sem crítica ao longo de uma relação profundamente desequilibrada. O Booker International Prize 2024 consagrou este livro como uma obra-prima da literatura europeia contemporânea. Mas para quem lê com atenção, a experiência termina com desilusão e frustração. Porque Kairos apresenta-se como um romance sobre a queda de um regime e o impacto disso nas relações íntimas, mas acaba por normalizar uma história de abuso emocional. Erpenbeck tem ambição formal e escreve com domínio técnico. Há momentos em que parece que o livro se vai transformar numa análise séria do entrelaçamento entre amor e poder, vigilância e desejo. Mas nas páginas finais, quando tudo devia ganhar clareza ou consequência...