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Connemara (2022)

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Peguei no Connemara  (2022) de Nicolas Mathieu movido por uma nostalgia difícil de explicar. Talvez fosse a capa, que me fazia lembrar viagens, ou a vontade de revisitar o passado através das palavras de alguém que, como eu, parece ter percebido que a vida raramente corresponde aos sonhos que construímos. Logo nas primeiras páginas, senti que o livro me falava diretamente: o cansaço com o presente, a sensação de não ter chegado a lado nenhum, a ideia de que tudo aquilo que parecia tão importante na juventude acabou por se dissipar, transformando-se em recordações que resistem apenas pela força da memória. À medida que avançava na leitura, percebi que a única salvação que o autor nos dá — ou talvez o único consolo — é a possibilidade de regressar a esse lugar interior onde guardamos, entre fracassos e conquistas, as memórias que nos formaram. Um refúgio sentimental, onde, mesmo que tudo pareça desfeito, encontramos ainda algum conforto emocional. Foi isso que me agarrou ao livro, ma...

A Guardiã (2024)

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Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer.  A Guardiã (2024)  de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque  narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar. Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a ...

Quando a Justiça está no Silêncio

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Várias críticas recentes à série " Secrets We Keep " (2025), da Netflix, apontam a forma como a narrativa falha em fazer justiça a Ruby, a jovem au pair filipina que desaparece sem que ninguém — nem os empregadores, nem a polícia, nem o Estado — realmente lute por ela. Um comentário em particular, vindo de um espectador filipino, afirma que o sofrimento de Ruby é usado como “ruído de fundo” para proteger o conforto dos brancos. É um olhar que compreendo, mas com o qual profundamente discordo.  A série não ignora Ruby — a Dinamarca é que o faz. E a série, ao mostrar isso sem filtros, sem consolo narrativo, está precisamente a denunciar esse apagamento. O que nos inquieta em Secrets We Keep não é o que a série esconde, mas sim aquilo que expõe de forma brutal: uma sociedade que não reconhece humanidade plena às suas cuidadoras, nem mesmo quando elas desaparecem, nem mesmo quando são vítimas de crimes hediondos. Se Katarina e o seu marido fossem punidos, estaríamos a ver uma f...

Destruição Social

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A série Little Bird é uma obra televisiva canadiana que nos mergulha no terror das consequências do " Sixties Scoop ", um período sombrio da história do Canadá. Durante as décadas de 1950 a 1980, milhares de crianças indígenas foram removidas à força das suas famílias e comunidades, sendo adoptadas por famílias não indígenas. Esta política visava a assimilação cultural, mas acabou por se transformar numa ação de profunda destruição social, criando traumas profundos na identidade de todos os envolvidos. A série é baseada em factos reais . A narrativa da série centra-se em Bezhig Little Bird, interpretada por Darla Contois, uma mulher indígena adoptada por uma família judaica em Montreal. Ao longo dos episódios, acompanhamos a sua autodescoberta e o modo como se tenta religar às suas raízes, enfrentando tudo e todos, num autêntico carrossel de emoções intensas decorrentes da adoção forçada. A série destaca-se pela abordagem psicológica de temas complexos, como identidade, pert...

Contra Camus

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"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido. A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança. A geografia e a emoção de "Meursau...

Orbital: para além da Terra

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Ler Orbital de Samantha Harvey é como atravessar uma fronteira do conhecido para o incógnito. Inicialmente, a fragmentação do texto convida à descoberta, abrindo uma janela para a realidade estranha e fascinante da vida em órbita. Harvey consegue transportar-nos para uma experiência quase sensorial, onde detalhes aparentemente banais — como a roupa suja, ou o ritmo alucinante de dezasseis amanheceres e entardeceres num único dia terrestre — adquirem uma nova dimensão, revelando-se profundamente significativos e existenciais. “But there are no new thoughts. They’re just old thoughts born into new moments – and in these moments is the thought: without that earth we are all finished. We couldn’t survive a second without its grace, we are sailors on a ship on a deep, dark unswimmable sea.” É importante destacar o excelente trabalho de pesquisa realizado pela autora sobre as condições de vida em órbita. Harvey oferece uma riqueza de informação nunca antes explorada, aprofundando com precis...

Coragem ou Narcisismo

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Constance Debré, em Love Me Tender  (2020) apresenta-se numa performance literária de voz direta, crua e nua. A sua escrita é um soco, sem filtros, quase um choque para o leitor. A autora despe-se de qualquer pudor, expondo as suas dores e a sua luta pela liberdade com uma franqueza que desperta tanto admiração quanto desconforto. A radicalidade da sua prosa está na recusa absoluta da máscara, num movimento contínuo de desnudamento, que parece desafiar o leitor a manter o olhar. Debré é uma mulher que parece querer viver sem concessões, explorando o limite da autenticidade. Há, inicialmente, uma fascinação: queremos conhecer alguém capaz de se expor assim, de confessar sem medo os seus desejos, as suas escolhas, os seus fracassos. Mas, à medida que avançamos, começamos a sentir o peso da repetição. E o livro, mesmo sendo curto, torna-se circular, uma espiral de dor e desejo que se repete sem variação. É como se Debré estivesse presa num ritual de autossabotagem, onde cada novo amo...