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Tolstoy e o Desejo

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Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como " A Sonata a Kreutzer " (1889), de Lev Tolstói. "The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que conti...

A Cassandra da Casa Fechada

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Não saí bem deste filme. Fiquei chateado. Transtornado. Quase irritado. Não porque falhe, pelo contrário, talvez tenha sido demasiado eficaz. O que me perturbou foi a ausência de alento, de rutura, de qualquer abertura. O que me doeu foi ver Leila, que tinha tudo — energia, visão, lucidez — terminar soterrada num mundo que não a merecia. Fiquei magoado porque o filme não lhe deu o espaço de florir, de transformar, de desbravar o seu caminho. Sou um amante das histórias que mostram como se sai, como se cresce, como se transforma. E aqui, tudo ficou igual. Tudo permanece fechado. " Leila's Brothers " (2022), Saeed Roustayi Leila podia ter sido como Tara Westover , como tantas mulheres que desafiam a gravidade das suas origens e rompem com os códigos herdados. Mas não. Aqui, o que a impede não é um sistema político, nem uma ideologia fechada, é uma teia de afetos mal resolvidos, um emaranhado de culpas e dívidas emocionais, onde a incompetência masculina, não religiosa, não ...

Sentir antes de dizer

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O livro " Sentience: The Invention of Consciousness " (2022) de Nicholas Humphrey propõe uma explicação funcional da consciência que a aproxima de uma estratégia evolutiva de sobrevivência. A sua tese central distingue entre dois tipos de consciência — a cognitiva e a fenomenológica —, sendo esta última a que dá cor e textura à experiência de estar vivo. Humphrey descreve a consciência não como uma janela para o mundo, mas como um palco interno onde o organismo sente o impacto de estar no mundo. Viver, para Humphrey, é assum mais do que existir, é sentir.  Este ponto de partida, que aproxima a consciência da emoção, sugere uma base comum com autores como António Damásio (1994), para quem a consciência emerge do corpo e das emoções que regulam a sua homeostasia. No entanto, à medida que o livro avança, Humphrey hesita em assumir essa ligação plena. Quando se aproxima da animalidade ou do corpo como sede do sentir, recua para explicações adaptativas, evitando nomear a emoção....

A Mentira da Simetria

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"If only I’d known then that I was your mirror image" diz Katharina no epílogo de  Kairos  (2021) de Jenny Erpenbeck, como se essa frase final pudesse resgatar tudo o que ficou para trás. Hans — homem mais velho, manipulador, e, como se descobre no final, informador da STASI — é retratado sem crítica ao longo de uma relação profundamente desequilibrada. O Booker International Prize 2024 consagrou este livro como uma obra-prima da literatura europeia contemporânea. Mas para quem lê com atenção, a experiência termina com desilusão e frustração. Porque Kairos apresenta-se como um romance sobre a queda de um regime e o impacto disso nas relações íntimas, mas acaba por normalizar uma história de abuso emocional. Erpenbeck tem ambição formal e escreve com domínio técnico. Há momentos em que parece que o livro se vai transformar numa análise séria do entrelaçamento entre amor e poder, vigilância e desejo. Mas nas páginas finais, quando tudo devia ganhar clareza ou consequência...

Connemara (2022)

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Peguei no Connemara  (2022) de Nicolas Mathieu movido por uma nostalgia difícil de explicar. Talvez fosse a capa, que me fazia lembrar viagens, ou a vontade de revisitar o passado através das palavras de alguém que, como eu, parece ter percebido que a vida raramente corresponde aos sonhos que construímos. Logo nas primeiras páginas, senti que o livro me falava diretamente: o cansaço com o presente, a sensação de não ter chegado a lado nenhum, a ideia de que tudo aquilo que parecia tão importante na juventude acabou por se dissipar, transformando-se em recordações que resistem apenas pela força da memória. À medida que avançava na leitura, percebi que a única salvação que o autor nos dá — ou talvez o único consolo — é a possibilidade de regressar a esse lugar interior onde guardamos, entre fracassos e conquistas, as memórias que nos formaram. Um refúgio sentimental, onde, mesmo que tudo pareça desfeito, encontramos ainda algum conforto emocional. Foi isso que me agarrou ao livro, ma...

A Guardiã (2024)

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Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer.  A Guardiã (2024)  de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque  narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar. Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a ...

Quando a Justiça está no Silêncio

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Várias críticas recentes à série " Secrets We Keep " (2025), da Netflix, apontam a forma como a narrativa falha em fazer justiça a Ruby, a jovem au pair filipina que desaparece sem que ninguém — nem os empregadores, nem a polícia, nem o Estado — realmente lute por ela. Um comentário em particular, vindo de um espectador filipino, afirma que o sofrimento de Ruby é usado como “ruído de fundo” para proteger o conforto dos brancos. É um olhar que compreendo, mas com o qual profundamente discordo.  A série não ignora Ruby — a Dinamarca é que o faz. E a série, ao mostrar isso sem filtros, sem consolo narrativo, está precisamente a denunciar esse apagamento. O que nos inquieta em Secrets We Keep não é o que a série esconde, mas sim aquilo que expõe de forma brutal: uma sociedade que não reconhece humanidade plena às suas cuidadoras, nem mesmo quando elas desaparecem, nem mesmo quando são vítimas de crimes hediondos. Se Katarina e o seu marido fossem punidos, estaríamos a ver uma f...