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Refugiados numa teia kafkiana

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“Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai” (2015) de Jenny Erpenbeck trata dos refugiados na Europa provenientes do continente africano, um tema mediático, mas nem por isso menos terrível por tudo o que encerra. O livro foca-se sobre a burocracia kafkiana criada pela Europa para evitar que os migrantes criem esperanças de facilitismo no processo de entrada. Ainda assim, são apresentados alguns relatos, bastante reais e crus dos países de origem e fuga, assim como da travessia do Mediterrâneo.  A escrita é boa, ainda que tenha sentido algum emaranhar nas descrições que não sei se é fruto da tradução a partir do alemão, apesar disso, a atmosfera eleva-se e envolve-nos.   Erpenbeck destaca-se pelas imagens que cria, nomeadamente o caso de abertura do livro, do lago por detrás da casa do professor universitário reformado em que morreu uma pessoa, e que agora o impede de aí tomar banho por não se conseguir desligar da presença do corpo... A autora não se limita a mostrar o lado negro das vivências dos refu

"O Regresso" (2016)

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"O Regresso" (2016) de Hisham Matar é um livro autobiográfico com um fundo histórico internacional, pelo que nunca seria uma perda de tempo por tudo o que aqui podemos aprender, mais ainda quando essa história é distante da nossa, ou pouca reconhecida internacionalmente como é o caso da história da criação da Líbia moderna, no século XX, com a invasão e genocídio levado a cabo por Itália que levaria depois ao poder um dos mais inumanos ditadores desse século, Khadafi. A estrutura e a escrita são atrozmente atabalhoadas durante os primeiros 2/3. Não se constrói qualquer linha narrativa, apesar de se referir a ela desde o título, tudo vai sendo construído através de pequenas historietas sobre dezenas de personagens — tios, tias, primos e conhecidos — que contribuem para criar a ideia de família, conceito que nunca sai da abstração pela total falta de ligação entre as historietas dessas pessoas. As historietas raramente descolam dos aspetos descritivos, mesmo quando o autor cede

Uma carta postal enviada do passado

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“La Carte Postale” (2021) é um livro particularmente emocionante pelo modo como romanceia parte da História que serve de cenário a uma saga familiar que atravessa de Moscovo a Paris, passando pela Letónia, Polónia, Israel, terminando na interseção entre Alemanha e França, em plena Segunda Grande Guerra. O livro baseia-se na família da autora, Anne Berest, e inicia-se no momento em que a família recebe um postal na caixa de correio (ver a capa do livro), já em 2003, no qual vêm inscritos os nomes dos bisavós e tios de Anne — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, todos desaparecidos em 1942, num campo de concentração na Polónia. O livro leva-nos atrás da investigação de Anne para descobrir quem terá enviado o dito postal e com que intenções. Pelo meio vamos descobrir a história daquelas 4 pessoas, do muito que atravessaram antes e durante a guerra, mas em essência vamos descobrir uma grande parte da História por detrás do colaboracionismo francês no tempo da ocupação francesa pelos Nazi. O t

Velar por Ela (2023)

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“Velar por Ela” ganhou o Goncourt 2023 , o principal prémio literário francês, através de um desempate realizado pelo presidente depois de 14 rondas a terminarem 5 contra 5. “Sarah, Susanne et l'écrivain” de Eric Reinhardt, o candidato natural a este tipo de prémio, ficou pelo caminho. Dito isto, “Velar por Ela” afasta-se das convenções dos prémios literários não conotando com complexidade, profundidade nem singularidade. Contudo, a história é original, a escrita é poética e fluída, e a trama enreda-nos em velocidade e até à última página. O cenário é uma aldeia no norte de Itália atravessado por toda a primeira parte do século XX. O nó do conflito centra-se sobre a amizade improvável entre uma menina da alta, Viola, intelectualmente dotada mas retraída pela família e costumes, e um jovem anão, Mimo, sem família nem posses, mas com um dom de génio para a escultura. Um cenário que nos transporta para o “Cinema Paradiso” (1988), com peripécias dignas de “ O Pintassilgo” (2013), de Do

Dostoiévski: uma vida íntima

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O título afastou-me, “Dostoevsky in Love” (2021), mas algumas críticas ao livro levaram-me a perceber que havia aqui algo mais. Alex Christofi não entrega um livro sobre os romances do escritor, apesar de falar deles, o foco é antes aquilo que aparece em subtítulo, “ An Intimate Life ”, que vai dos amores às obsessões, doenças, humilhações, torturas, e claro, a fé. Mas o que torna esta obra verdadeiramente incontornável é o seu processo de criação. Christofi começa por falar na ausência de uma autobiografia que Dostoiévski quis escrever mas acabou por não o fazer, pelo que Christofi procura exatamente chegar aqui àquilo que poderia ter sido essa autobiografia, ou como lhe chama o autor, "memórias reconstruídas". Para o efeito, faz algo, academicamente nada aconselhável, como ele própria afirma, mas que acaba resultando num trabalho imensamente poderoso. “Dostoevsky in Love” apresenta-se como um pedaço de tecido da vida de Dostoiévski, costurado de forma uniforme e homogéna a

Lembrança do Passado da Terra

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“A Morte Eterna” é um livro verdadeiramente inebriante. Sendo a terceira parte de uma saga, vem munido de um extenso contexto que lhe permite trabalhar amplamente as reviravoltas de enredo que agarram a nossa atenção. Por outro lado, quantas terceiras-partes conhecemos que vão verdadeiramente além da obra original? É-me muito difícil dar conta da intensidade da experiência desta leitura, porque Liu Cixin junta o melhor da arte de contar histórias com o melhor da ciência. Cixin consegue imaginar, especular, a representação de uma realidade futura de tal forma factual que quase parece estar a escrever uma ficção histórica, talvez não por acaso o título da trilogia foi estabelecido como " Lembrança do Passado da Terra ". A quantidade de conceitos elaborados e os enredos construídos em redor desses é estonteante, dando conta de um virtuosismo singular, não na forma escrita, nem na construção dos personagens, mas na capacidade de criar mundos e fazer-nos passear dentro deles atrav

Reportagem a partir de um País Perdido

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Novaya Gazeta foi um jornal independente pró-democracia criado na Rússia em 1993, reconhecido internacionalmente pelas suas reportagens de investigação com o prémio Nobel da Paz em 2021 atribuído ao fundador e chefe de redação Dmitry Muratov, com a menção: "pelos seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, que é uma condição prévia para a democracia e para uma paz duradoura". Desde 2000, este jornal perdeu 6 jornalistas, entre os quais Anna Politkovskaya , todos assassinados enquanto realizavam os seus trabalhos de investigação. Elena Kostyuchenko , descobriu a sua paixão pelo jornalismo quando tinha 14 anos, por volta de 2000, ao ler os textos de Anna Politkovskaya. Com apenas 17 anos, entrou para a equipa do jornal. Em 2014, foi quem demonstrou, através da sua investigação, que existiam tropas russas no Donbass. Com a invasão da Ucrânia em Fevereiro 2022, Kostyuchenko passou 4 semanas na linha da frente a reportar as atrocidades das tropas russas. Em setembr