A Condição Humana, segundo David Benatar

No final da introdução, de "The Human Predicament: A Candid Guide to Life's Biggest Questions" (2017), tive de fazer uma pausa, porque o meu estado de humor mudou, senti a vertigem da depressão a aproximar-se. Dei-lhe o benefício da dúvida, acabando por ler o resto, não porque o tema mudou, mas porque o discurso se alterou, focando-se mais na desconstrução de argumentos e dialética. David Benatar é reconhecido como filósofo do pessimismo pelas suas posições niilistas, nomeadamente antinatalistas. Não é nada de novo, sempre existiram apesar de com pouco sucesso, porque como diz Benatar, as pessoas preferem as ilusões das prateleiras da autoajuda. Na verdade, antes de Benatar já me tinha enamorado por Schopenhauer, mas Benatar é distinto, desde logo porque escreve noutro tempo, com acesso a muita mais ciência sobre as nossas condições biológicas e cósmicas. Ainda assim, padece do mesmo mal de um outro pessimista, Emil Cioran, a excessiva repetição, o martelar de razões no suporte das suas certezas.

Neste seu terceiro livro, Benatar enfrenta a grande questão do porque estamos aqui. Qual é o nosso predicado? Segundo Benatar, não é nenhum. Desde a condição individual à cósmica, passando pela familiar e social, nada significa nada em condições absolutas. A nossa vida não passa de um contínuo de sofrimento para chegar a nada. Foi aqui que comecei a colocar Benatar no pedestal oposto a Carl Sagan, um otimista nato, capaz de ver o melhor do ser humano em todas as suas condições, incluindo cósmicas. Se o coloquei no pedestal oposto, foi porque lhe reconheci valor nalgumas das suas ideias, não porque as desprezei.

Benatar ataca de forma profusa os nossos ideais. Para nos levantarmos todos os dias e cuidar dos nossos filhos, tendemos a crer no significado de tudo o que fazemos, no aspeto positivo de continuar a repetir os ciclos diários, semanais, anuais. Porque queremos acreditar que estamos a fazer o melhor que conseguimos pelos que de nós precisam. Mas Benatar ataca esta condição no imediato dizendo que não só a nossa a qualidade vida é precária, como contribuímos para criar maior infelicidade ao criar novas vidas neste planeta. Para o demonstrar, o autor constrói um enquadramento para a atribuição de significado às nossas vidas com 3 níveis:

Meaning sub specie hominis

O significado que podemos construir ao nível da nossa relação com outro individuo, ou connosco próprios.

Meaning sub specie communitatis

O nível do significado que podemos construir ao nível da família e da nossa comunidade. 

Meaning sub specie humanitatis

O nível de significado que podemos construir ao nível global, de toda a população.

Para a construção destes significados Benatar define como medição o reconhecimento do que fizemos. Seja de um outro indivíduo por nós, de nós mesmos por algum objetivo atingido, seja depois pela família, comunidade ou então ao nível planetário. Daí que no hominis, seja a condição base do indivíduo sobre si, enquanto no humanitatis encaixam personalidades como Shakespeare, Nightingale, Einstein ou Mandela (Benatar é Sul Africano). O autor refere a compreensão desta hierarquia de significado como a parte boa, já que todos podemos construir significado se olharmos para as nossas vidas a partir destes níveis, nomeadamente a partir do primeiro nível. Contudo, este lado positivo é imediatamente deitado por terra quando sabemos que:

“even those whose lives have meaning from more expansive terrestrial perspectives are rarely satisfied with the amount of meaning their lives have. Not only do people typically want more meaning than they can get, but the most meaning that anybody is capable of attaining is inevitably significantly limited.”

O livro é dedicado a compreender esta necessidade de “transcender os limites” do significado daquilo que somos e fazemos. Porque o significado individual termina com o fim das nossas vidas, pressionando-nos desse modo a ir além, mas o significado familiar termina também com a vida desses familiares, pelo que existe como que uma bigorna sobre nós a pressionar-nos para ir continuamente além. Mesmo aqueles que atingiram uma marca global em vida, continuaram a questionar-se até ao fim sobre o verdadeiro impacto dos seus feitos. 

Na verdade, só esta ânsia pela transcendência explica porque não nos suicidamos aos magotes. Se nada do que fazemos tem ou faz sentido, porque continuamos? Benatar não defende o suicídio, ao contrário de outros pessimistas. Defende-o apenas em condições de sofrimento atroz. Segundo ele, não podemos criar mais significado simplesmente terminando com a nossa vida. 

Benatar discute ainda a nossa relevância a nível cósmico, defendendo a nossa insignificância, mas com uma variante muito interessante. Diz Benatar, que somos um mero grão de areia na praia, contudo, se realmente formos únicos em todo o universo, então talvez exista um significado muito mais relevante para aquilo que somos. O mesmo nos diz sobre a questão da imortalidade, que vista de uma perspectiva mortal é aterradora, mas vista da condição de imortalidade ganha todo um contorno distinto.

No meio de toda esta discussão sobre a construção de significado, Benatar nunca deixa de apontar o quão problemática, horrível, é toda a nossa vida. Um dilema que nos coloca em cima da mesa dá bem conta disso mesmo:

“The worst pains are also worse than the best pleasures are good. Those who deny this should consider whether they would accept an hour of the most delightful pleasures in exchange for an hour of the worst tortures.”

Para Benatar, o problema de tudo isto é que na nossa subjetividade realizamos escolhas, por vezes não conscientes, para criar a ilusão de que estamos melhor do que aquilo que realmente estamos. Como ele diz, sobre o "otimista pragmático": “I recognize the human predicament. It is horrible, but I want to adopt an optimistic view to help me cope. I shall continue, at the back of my mind, to be aware of the predicament, but I can compartmentalize those thoughts—or at least try to.” 

Para o autor esta visão conduz à criação de ilusões, ao mascarar da realidade. Desse modo, defende antes um “pessimismo pragmático” que permita manter a consciência de que tudo é horrível, realizando projetos em busca de algum significado que contribuam para a melhora das condições de vida, mas abstendo-se de “criar novas vidas”. Do seu ponto de vista, esta abordagem permite algum alívio sem contudo negar a realidade.


Confesso que me soube a pouco. Demasiado debate, bastante repetitivo pela enumeração de casos no suporte das ideias que variam apenas em ligeiros graus. Para no final chegarmos a uma variação de interpretação daquilo que fazemos e que na verdade se distingue apenas pela férrea defesa antinatalista. Ainda assim, parece-me uma visão mais ponderada, do que as extremistas em defesa do enfrentamento da horribilidade, da inação perante a mesma, ou até a defesa do término da própria condição. 

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