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A Lucidez que Nos Quebra

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Não há forma de suavizar o que se segue. Yiyun Li é professora em Princeton e perdeu os dois filhos por suicídio (2018, 2024). E também não há como suavizar este livro. Things in Nature Merely Grow  (2025) é, antes de mais, um livro sobre a perda. Não a perda sentimental, aqui não há espaço para redenção. É a perda como dissolução da narrativa, como gesto radical de permanência no abismo. Yiyun Li não escreve para consolar, nem para explicar. Escreve para permanecer lúcida onde a maioria de nós se desfaria. Li apresenta um livro de análise profunda sobre o que quer dizer estar vivo, sobre o que quer dizer o suicídio, sobre a aceitação da vida tal como ela nos é entregue — sem adornos, sem promessas, sem sentido imposto. Aceitei esse pacto. Entrei no livro sabendo ao que ia, ou julgando saber. Disse a mim mesmo que acompanharia aquela lucidez até ao fim, mesmo sabendo que não seria confortável. Mas à medida que o livro avançava, sobretudo na segunda parte, quando Yiyun Li se detém ...

Destruição Social

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A série Little Bird é uma obra televisiva canadiana que nos mergulha no terror das consequências do " Sixties Scoop ", um período sombrio da história do Canadá. Durante as décadas de 1950 a 1980, milhares de crianças indígenas foram removidas à força das suas famílias e comunidades, sendo adoptadas por famílias não indígenas. Esta política visava a assimilação cultural, mas acabou por se transformar numa ação de profunda destruição social, criando traumas profundos na identidade de todos os envolvidos. A série é baseada em factos reais . A narrativa da série centra-se em Bezhig Little Bird, interpretada por Darla Contois, uma mulher indígena adoptada por uma família judaica em Montreal. Ao longo dos episódios, acompanhamos a sua autodescoberta e o modo como se tenta religar às suas raízes, enfrentando tudo e todos, num autêntico carrossel de emoções intensas decorrentes da adoção forçada. A série destaca-se pela abordagem psicológica de temas complexos, como identidade, pert...

Coragem ou Narcisismo

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Constance Debré, em Love Me Tender  (2020) apresenta-se numa performance literária de voz direta, crua e nua. A sua escrita é um soco, sem filtros, quase um choque para o leitor. A autora despe-se de qualquer pudor, expondo as suas dores e a sua luta pela liberdade com uma franqueza que desperta tanto admiração quanto desconforto. A radicalidade da sua prosa está na recusa absoluta da máscara, num movimento contínuo de desnudamento, que parece desafiar o leitor a manter o olhar. Debré é uma mulher que parece querer viver sem concessões, explorando o limite da autenticidade. Há, inicialmente, uma fascinação: queremos conhecer alguém capaz de se expor assim, de confessar sem medo os seus desejos, as suas escolhas, os seus fracassos. Mas, à medida que avançamos, começamos a sentir o peso da repetição. E o livro, mesmo sendo curto, torna-se circular, uma espiral de dor e desejo que se repete sem variação. É como se Debré estivesse presa num ritual de autossabotagem, onde cada novo amo...

Escrever através dos outros

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Não conhecia Philippe Lançon, cheguei a este seu livro através do acontecimento que lhe deu origem, o ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo, em 7 de janeiro 2015. Lançon, crítico literário, escrevia para o Charlie Hebdo, e para o Libération, onde tinha acabado de publicar a análise de “Submission” de Michel Houellebecq que seria posto à venda nesse mesmo dia. Lançon foi um dos poucos sobreviventes do ataque, apesar de ter sido atingido na cara e maxilar, tendo passado quase um ano no hospital, onde foi submetido a quase vinte operações para recuperar alguma das funcionalidades vitais — beber, comer e falar. Lançon escreve belissimamente. A forma do discurso é perfeita. Contudo, não faltam só competências narrativas, capazes de envolver o leitor, falta também mundo, nomeadamente matéria humana. Todo o livro é escrito como um conjunto de análises literárias. Análises de objetos e não de pessoas, de experiências humanas com sentires, vivências, alegrias, dores e aflições. F...

Marie Curie, academia e família

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Se algum dia vos passar pela cabeça a ideia de fazer um doutoramento, leiam este livro, "Madame Curie" (1937), escrito pela filha, Éve Curie. A principal característica que alguém, desejoso de abraçar o caminho da ciência, deve possuir, é aqui apresentada no seu expoente máximo: a humildade . Sem humildade, não é possível fazer ciência. Pode-se fazer bons negócios, mas ciência, efetiva, muito dificilmente. Marie Curie aprendeu desde muito tenra idade a importância dessa humildade, mas também a importância da resiliência, do trabalho continuado e persistente para chegar ao conhecimento. A sua história de vida é um hino à Ciência. O sobrenome Curie veio do marido, Pierre Curie, com quem casou em 1895, responsável por propiciar as condições, em França, para que Marie Curie realizasse o seu doutoramento no qual viria a descobrir dois novos elementos, o Polónio e o Rádio. Mas Marie nasceu Maria Salomea Skłodowska na Polónia, em 1867. Se a sua história de 1895 até 1934 impressiona ...

"O Regresso" (2016)

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"O Regresso" (2016) de Hisham Matar é um livro autobiográfico com um fundo histórico internacional, pelo que nunca seria uma perda de tempo por tudo o que aqui podemos aprender, mais ainda quando essa história é distante da nossa, ou pouca reconhecida internacionalmente como é o caso da história da criação da Líbia moderna, no século XX, com a invasão e genocídio levado a cabo por Itália que levaria depois ao poder um dos mais inumanos ditadores desse século, Khadafi. A estrutura e a escrita são atrozmente atabalhoadas durante os primeiros 2/3. Não se constrói qualquer linha narrativa, apesar de se referir a ela desde o título, tudo vai sendo construído através de pequenas historietas sobre dezenas de personagens — tios, tias, primos e conhecidos — que contribuem para criar a ideia de família, conceito que nunca sai da abstração pela total falta de ligação entre as historietas dessas pessoas. As historietas raramente descolam dos aspetos descritivos, mesmo quando o autor cede...

Uma carta postal enviada do passado

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“La Carte Postale” (2021) é um livro particularmente emocionante pelo modo como romanceia parte da História que serve de cenário a uma saga familiar que atravessa de Moscovo a Paris, passando pela Letónia, Polónia, Israel, terminando na interseção entre Alemanha e França, em plena Segunda Grande Guerra. O livro baseia-se na família da autora, Anne Berest, e inicia-se no momento em que a família recebe um postal na caixa de correio (ver a capa do livro), já em 2003, no qual vêm inscritos os nomes dos bisavós e tios de Anne — Ephraim, Emma, Noemie, Jacques —, todos desaparecidos em 1942, num campo de concentração na Polónia. O livro leva-nos atrás da investigação de Anne para descobrir quem terá enviado o dito postal e com que intenções. Pelo meio vamos descobrir a história daquelas 4 pessoas, do muito que atravessaram antes e durante a guerra, mas em essência vamos descobrir uma grande parte da História por detrás do colaboracionismo francês no tempo da ocupação francesa pelos Nazi. O t...