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Entre Sísifo e os ex-amantes

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Ana Moreau canta Les Exs  (2023) como quem se expõe num recado deixado ao acaso, a voz trémula, as palavras presas a uma dor que insiste em não desaparecer. Não há drama grandioso, apenas a persistência íntima de um coração que não aceita morrer. A narrativa que se constrói é feita de fragmentos quotidianos, lençóis trocados, parceiros novos, números marcados por reflexo, e de uma verdade subterrânea: por mais que a vida avance, o amor não se apaga, instala-se num canto escondido e continua a vibrar. O refrão repete como uma ética simples: “faut juste continuer d’aimer, différemment.” Não é o fim, é transformação.

Achilles, ou a elegância da morte anunciada

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Nunca escrevi sobre canções neste espaço. Sempre associei o formato à fruição íntima e passageira, algo que se sente mas raramente se detém para ser desmontado. Mas de vez em quando surge uma exceção, uma canção que se impõe como texto, como narrativa plena, onde o tempo se dobra e os versos nos falam como personagens. Achilles (2025) , dos Divine Comedy , é uma dessas raras canções. Escrita e cantada por Neil Hannon, Achilles começa como uma elegia antiga. Um guerreiro contempla a morte de um amigo e promete vingança. Estamos em plena Ilíada , entre barcos queimados e deuses distraídos. Aquiles, Pátroclo, a cólera transformada em destino. A canção invoca esse universo mítico com sobriedade, sem grandiloquência, apenas sugerindo o peso trágico com versos contidos: “You slew my sweetest friend / His death will be avenged” . A música não se exalta — a orquestração embala. Como se dissesse: conhecemos este lamento há milhares de anos. O que surpreende é o salto seguinte. A segunda estro...

Paradise (2025)

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A nova série Paradise , da Disney, trouxe uma promessa ambiciosa: um thriller político pós-apocalíptico com uma estética trabalhada e um ritmo narrativo intenso. Criada por Dan Fogelman, a série apresenta um cenário intrigante – um bunker subterrâneo no Colorado, anos após um evento catastrófico, onde um agente do Serviço Secreto (Sterling K. Brown) investiga o assassinato do Presidente dos EUA. Mas, para além do enredo, o que me capturou foi a sua abordagem estética e estrutural – e, infelizmente, também a sua incapacidade de manter a excelência inicial. Os primeiros dois episódios de Paradise estão entre o melhor que já se fez em televisão. A série inicia com um impacto tremendo, criando uma tensão quase palpável através da montagem ágil, dos enquadramentos precisos e da utilização de silêncios e diálogos afiados. Há um minimalismo visual que funciona magistralmente – a contenção da mise-en-scène amplifica o sentido de urgência, obrigando o espectador a absorver cada detalhe com um...

O sofrimento na literatura

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"Ceci n’est pas un fait divers" (2023) de Philippe Besson é uma obra que aborda o feminicídio através da escalpelização psicológica dos efeitos emocionais deste evento traumático numa família. O ponto de vista é distinto, já que apresentado pelos olhos do irmão mais velho (19), que fica para cuidar da irmã mais nova (13). Contudo, se a intensidade emocional da experiência é elevada, o livro levanta-me questões sobre os propósitos da literatura. Um dos pontos fortes do livro é a gestão de informação e de emoção por Besson, que demonstra habilidade no controlo do suspense e na criação de dor no leitor. Os embates emocionais são particularmente intensos no início e no final da narrativa, levando o leitor através de uma montanha-russa psicológica. Este mergulho profundo no sofrimento das personagens permite um acesso privilegiado ao trauma do acontecimento. Por outro lado, revela um dos principais problemas da obra pelo modo como se centra quase exclusivamente no evento ocorri...

O nascer do Oeste americano

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A série "American Primeval" (2025), dirigida por Peter Berg, representa uma disrupção dos cânones narrativos e estéticos do género Western. O argumento da série, de Mark L. Smith, oferece uma desconstrução do Western clássico, recusando a glamourização de heróis, pioneiros e mesmo nativos. Explora-se o sofrimento humano, a violência sistémica e as profundas ambiguidades morais que moldaram a expansão para o Oeste americano.  Com uma escrita arrojada, cinematografia imersiva e performances notáveis, este novo olhar redefine um mundo que tem sido mitificado com base numa imaginário longe da realidade. O trabalho de câmara e fotografia, destaca-se por uma abordagem crua e atmosférica. O uso de paletas de cores frias e sombrias e de enquadramentos sobre a vastidão das paisagens conferem à série um tom introspectivo. A natureza pode ser bonita, mas não deixa de ser mais um elemento hostil que condiciona a vida e as relações interpessoais naquele lugar, recordando "Butcher...

Narrativas Streaming: 2024

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Nos últimos doze meses, explorei uma ampla variedade de narrativas oferecidas pelas plataformas de streaming, confirmando a riqueza e a diversidade da produção audiovisual seriada. O panorama tem vindo a afirmar-se ao lado, e por vezes mesmo acima do cinema, igualando muitas vezes aquilo que até agora só a literatura conseguia fazer, nomeadamente no desenvolvimento de personagens. Analisando a seleção tenho quase tudo no domínio do thriller focado em dois grandes géneros: policial e ficção-científica.  Selecionei as melhores, no domínio narrativo, identificando as plataformas de streaming onde vi cada uma. Em cada plataforma, estão por ordem de qualidade. FILMIN Prisoner (Dinamarca, 2023) ( IMDB ) Criador: Kim Fupz Aakeson Uma narrativa sombria que explora os limites da liberdade e da mente humana. Sem grandes artifícios, a série prende a atenção pela crueza entre os personagens. The Sixth Commandment (UK, 2023)( IMDB ) Criadora: Sarah Phelps Misteriosa, esta minissérie aborda um...

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

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Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida , El Dorado , Shangri-La , Lemuria , Avalon , Agharta , etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.  8 episódios repletos de desinformação científica A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos.  "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos , pathos e logos —...

Nexus (2024)

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Este é o 4º livro de Harari que leio, depois de " Sapiens " (2011), " Homo Deus " (2015) e " 21 Lições " (2018), pelo que a minha experiência de leitura refletirá essas mesmas leituras prévias. Assim, se leram os livros anteriores, não esperem encontrar aqui qualquer nova ideia. Harari mantém-se colado aos temas desses livros prévios, com maior ênfase em Homo Deus e 21 Lições . O que Harari aqui tenta fazer novo é criar um modelo de análise política baseado em sistemas de informação, recorrendo a todo o seu conhecimento de História, juntando-o à sua sagacidade de análise e interpretação dos sinais contemporâneos. Contudo, esse modelo que parece ser o ponto de arranque do livro, e do próprio título, depressa passa a segundo plano para se centrar no que mais gosta de fazer, as análises de casos — questões éticas sobre política e  tecnologia — a partir do que vai realizando pequenas abstrações sobre a realidade.  O modelo que Harari começa por tentar desenha...

Goncourt 2023, 2º lugar para Eric Reinhardt

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“Sarah, Susanne et l'écrivain” (2023) de Eric Reinhardt é o livro que terminou em ex aequo no Goncourt 2023, tendo ao fim de 14 rondas sido decidido pelo voto do presidente do júri por “Veiller pour Elle” de Jean-Baptiste Andrea . São dois livros muito distintos. “Veiller pour Elle” é um livro centrado na história que quer contar, enquanto “Sarah, Susanne et l'écrivain” se centra na forma do contar da sua história. Deste modo, não devem ser comparados, já que trabalham objetos distintos, pelo que seja natural esta divisão no júri que decorre da função que privilegiam na literatura.  Sarah confia a história da sua vida a um escritor para que ele a transforme num romance. No romance, dentro do romance que lemos, Sarah chama-se Susanne, e nós seguimos a conversa entre Sarah e o escritor, nomeadamente algumas discussões sobre as opções criativas do escritor para ilustrar os factos apresentados por Sarah. A história de fundo dá conta de uma mãe de família que descobre que o marido ...