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Super Negligência

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Hoffman quer muito que acreditemos que a IA será o trampolim da humanidade. Que não há monstros debaixo da cama — só oportunidades. Mas a crença não basta. Superagency vende-se como um manifesto tecno-humanista, mas o que entrega é um panfleto corporativo disfarçado de visão ética. Hoffman procura afastar os fantasmas do apocalipse digital, mas ao fazê-lo apaga também os sinais de alarme. O tratamento que dá a obras como 1984 é revelador.  Mais do que ingenuidade, o forma como Hoffman aborda  1984 revela um perigoso vazio interpretativo. Ao sugerir que Orwell falhou ao não explorar as “possibilidades comunicacionais” dos telescreens, Hoffman transforma um dos símbolos mais densos da opressão moderna num defeito técnico — como se a distopia fosse um erro de design. A frase “the fact that you can be overheard also means you can be heard” ignora o papel central do medo e da vigilância internalizada nos regimes autoritários. Pior: pressupõe que bastaria vontade política para t...

Eulogy (Black Mirror, E5.S7)

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Há obras que não nos comovem por aquilo que revelam, mas pelo modo como o fazem. Eulogy , episódio  cinco da sétima temporada de Black Mirror, não me tocou por conter uma reviravolta comovente, nem por recuperar a imagem de um amor perdido. Tocou-me porque soube conduzir, com precisão, o gesto de revisitar uma memória — ponto por ponto —, suportado por uma IA realisticamente desenhada. A força do episódio não está tanto na dor do que se perdeu, mas na coreografia do recordar: o modo como uma imagem puxa uma pergunta, como uma música arrasta uma sensação esquecida, como o olhar sobre um objeto antigo pode fazer tremer um mundo interior inteiro. O episódio não obriga à catarse, mas convida a lembrar aquilo que esquecemos por defesa, aquilo que só pode ser revisto se houver alguém a caminhar connosco. Foi isso que me deixou em êxtase, a rara experiência de ver uma obra capaz de encenar a complexidade do recordar sem pressa, sem manipulação, sem atalho emocional. A representação do cu...

The Alignment Problem (2020)

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Brian Christian, conhecido por explorar as fronteiras entre tecnologia e humanidade, oferece com T he Alignment Problem: Machine Learning and Human Values  uma das reflexões mais lúcidas e acessíveis sobre os dilemas éticos e técnicos da inteligência artificial contemporânea. Lançado em 2020, o livro permanece altamente relevante, mesmo num cenário transformado pelos avanços pós-GPT-3. Ao invés de envelhecer, a obra adquire um valor quase arqueológico, revelando as fundações conceptuais que sustentam a discussão atual sobre IA, valores humanos e responsabilidade. A leitura é uma jornada contínua de aprendizagem. Embora alguns exemplos e enquadramentos já soem datados — próprios de uma IA ainda mais rudimentar — a articulação entre filosofia, ciência computacional e psicologia é feita com notável equilíbrio. Mesmo os capítulos mais introdutórios, centrados na psicologia humana, revelam-se necessários para ancorar as questões técnicas em experiências humanas reais. Afinal, falar de a...

Pode o Sentir ser Formalizado

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Philippe Schlenker apresenta, no seu livro,  "What It All Means" (2022),  uma proposta ambiciosa: construir uma semântica formal aplicável não apenas à linguagem natural, mas também a gestos, música e outras formas expressivas. No centro dessa proposta está a ideia de composicionalidade: o significado de um enunciado é inteiramente derivado do significado das suas partes e das regras que as combinam. Trata-se de uma herança direta da lógica de Montague , agora estendida a (quase) tudo, que me levou quase dois anos a ler. Philippe Schlenker é uma figura central no campo da semântica formal contemporânea. Investigador no Institut Jean-Nicod (CNRS) e professor afiliado na New York University, tem vindo a expandir os limites da semântica tradicional, aplicando-a a domínios antes considerados periféricos, como a linguagem gestual, a música e até a comunicação animal. O seu trabalho destaca-se pela combinação rara de rigor lógico e abertura interdisciplinar, tentando construir pont...

Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

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Durante as últimas semanas tenho-me encontrado, cada vez com mais frequência, a escrever com um assistente IA. Digo "com" de forma consciente: não me refiro apenas ao uso instrumental de uma ferramenta, mas a uma prática que tem revelado, de forma inesperada, traços de colaboração, de diálogo e até de transcendência. Esta experiência levou-me a questionar, com alguma ansiedade e profundidade, a natureza da criação, a ética da autoria e o que significa escrever com — e não apenas através de — uma entidade sem ego. Organizo aqui, como forma de registo e partilha, três grandes dimensões dessa reflexão. 1. A Experiência da Co-escrita com uma IA O que me atrai inicialmente nesta prática é a fluidez. Escrever com a IA reduz o peso da mecânica textual — já não preciso de lutar com cada frase, de reestruturar cada parágrafo. Mas o que me surpreende é que, paradoxalmente, essa leveza vem acompanhada de maior profundidade reflexiva. Ao libertar-me das tarefas formais, encontro espaço m...

Uma breve História da Inteligência

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" A Brief History of Intelligence: Evolution, AI, and the Five Breakthroughs That Made Our Brains " (2023) de Max Bennett é uma obra que nos transporta numa viagem fascinante pela evolução da inteligência humana, explorando como os avanços biológicos moldaram a nossa capacidade cognitiva e como essa visão tem vindo a informar o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Bennett identifica cinco transformações cruciais na evolução do cérebro biológico que suportariam os avanços na inteligência humana, cada um construído sobre o anterior para culminar na forma de inteligência que caracteriza hoje os seres humanos. O primeiro avanço, a Direção ( steering ) , refere-se à capacidade de se mover intencionalmente em resposta a estímulos. Este é o ponto de partida para qualquer forma de vida interagir com o ambiente de forma eficaz, permitindo aos organismos satisfazer necessidades básicas como encontrar alimento ou evitar predadores. A direção é fundamental para a sobrevivênci...

Muito barulho por nada

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“Co-Intelligence: Living and Working with AI” (2024) de Ethan Mollick transformou-se num sucesso de vendas e citações em muito pouco tempo, pelo que apesar do título não me oferecer nada de novo, acabei por ceder a ler para perceber de que era feito o hype. Não passou disso mesmo, ‘muito barulho por nada’. Mollick é um professor de gestão e inovação, grande entusiasta desta última geração de IA, pelo que dedica todo o livro a discutir as experiências que tem feito, a maior parte delas a nível meramente pessoal, ou seja, sem evidências. Por outro lado, quando cita estudos, fá-lo de forma ligeira, extraindo o que lhe interessa e ignorando o que não interessa, não mencionando o escopo e amostras reduzidas dos mesmos. Alguns casos são mesmo gritantes, e um deles abre logo o livro pelo que o transcrevo abaixo [1]. Ou seja, é um livro para amantes desta nova IA, para todos aqueles que acreditam que vão ter um assistente para fazer todo trabalho chato por si, mais, para todos os que pensam qu...

IA Generativa, um gerador de novos factos

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Li dois livros seguidos sobre a febre da IA Generativa — o primeiro “Creativity Code” (2019), escrito por Marcus du Sautoy como resposta ao impacto do GPT-1, e “Brave New Words” (2024), escrito por Salman Khan, o guru que criou a Khan Academy , como resposta ao impacto do GPT-4 — e confesso ter ficado boquiaberto, não com os feitos do GPT, mas com o deslumbramento dos autores, principalmente no segundo caso, com o livro a funcionar como uma declaração de fé na IA Generativa, suportada diretamente pela Open AI e Bill Gates. Se acalentava dúvidas quanto ao efetivo impacto da IA Generativa fora do domínio criativo, o fervor apresentado por estes livros tornou bastante claro para mim que o rei vai nu. Tudo o que vou escrever a seguir tem que ver com IA Generativa que é distinta da tradicional IA Preditiva. A segunda está relacionada com o novo mundo em que vivemos, construído sobre informação digital, dados digitalizados, que em grande número se tornam quase impossíveis de analisar por nós...