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Entre Sísifo e os ex-amantes

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Ana Moreau canta Les Exs  (2023) como quem se expõe num recado deixado ao acaso, a voz trémula, as palavras presas a uma dor que insiste em não desaparecer. Não há drama grandioso, apenas a persistência íntima de um coração que não aceita morrer. A narrativa que se constrói é feita de fragmentos quotidianos, lençóis trocados, parceiros novos, números marcados por reflexo, e de uma verdade subterrânea: por mais que a vida avance, o amor não se apaga, instala-se num canto escondido e continua a vibrar. O refrão repete como uma ética simples: “faut juste continuer d’aimer, différemment.” Não é o fim, é transformação.

Sentir antes de dizer

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O livro " Sentience: The Invention of Consciousness " (2022) de Nicholas Humphrey propõe uma explicação funcional da consciência que a aproxima de uma estratégia evolutiva de sobrevivência. A sua tese central distingue entre dois tipos de consciência — a cognitiva e a fenomenológica —, sendo esta última a que dá cor e textura à experiência de estar vivo. Humphrey descreve a consciência não como uma janela para o mundo, mas como um palco interno onde o organismo sente o impacto de estar no mundo. Viver, para Humphrey, é assum mais do que existir, é sentir.  Este ponto de partida, que aproxima a consciência da emoção, sugere uma base comum com autores como António Damásio (1994), para quem a consciência emerge do corpo e das emoções que regulam a sua homeostasia. No entanto, à medida que o livro avança, Humphrey hesita em assumir essa ligação plena. Quando se aproxima da animalidade ou do corpo como sede do sentir, recua para explicações adaptativas, evitando nomear a emoção....

Orbital: para além da Terra

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Ler Orbital de Samantha Harvey é como atravessar uma fronteira do conhecido para o incógnito. Inicialmente, a fragmentação do texto convida à descoberta, abrindo uma janela para a realidade estranha e fascinante da vida em órbita. Harvey consegue transportar-nos para uma experiência quase sensorial, onde detalhes aparentemente banais — como a roupa suja, ou o ritmo alucinante de dezasseis amanheceres e entardeceres num único dia terrestre — adquirem uma nova dimensão, revelando-se profundamente significativos e existenciais. “But there are no new thoughts. They’re just old thoughts born into new moments – and in these moments is the thought: without that earth we are all finished. We couldn’t survive a second without its grace, we are sailors on a ship on a deep, dark unswimmable sea.” É importante destacar o excelente trabalho de pesquisa realizado pela autora sobre as condições de vida em órbita. Harvey oferece uma riqueza de informação nunca antes explorada, aprofundando com precis...

A Vida é Difícil (2022)

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Kieran Setiya, professor de filosofia no MIT, não oferece ilusões em Life is Hard . Desde o início, reconhece que os problemas da vida — pessoais, políticos, existenciais — são demasiado grandes para serem resolvidos apenas pela razão. Mas a filosofia, ainda assim, pode oferecer algo: não a cura, mas apaziguamento. Este livro é menos um tratado sistemático do que um passeio reflexivo. Setiya convoca grandes nomes — Iris Murdoch, Virginia Woolf, Simone Weil, Adorno, Marx, a Escola de Frankfurt — mas fá-lo com uma leveza rara no meio académico. Nunca pesa sobre o leitor; antes conduz-nos como quem conversa ao final da tarde, sentado à sombra, olhando o mar. Recuperando conceitos do seu livro anterior, Midlife: A Philosophical Guide , Setiya revisita a distinção entre atividades télicas (com um fim) e atélicas (sem fim), mas desta vez reconhece abertamente a importância da narrativa. É importante chegar ao fim e obter sentido, criar significado, não podemos é transformar tudo na vida ...

Pode o Sentir ser Formalizado

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Philippe Schlenker apresenta, no seu livro,  "What It All Means" (2022),  uma proposta ambiciosa: construir uma semântica formal aplicável não apenas à linguagem natural, mas também a gestos, música e outras formas expressivas. No centro dessa proposta está a ideia de composicionalidade: o significado de um enunciado é inteiramente derivado do significado das suas partes e das regras que as combinam. Trata-se de uma herança direta da lógica de Montague , agora estendida a (quase) tudo, que me levou quase dois anos a ler. Philippe Schlenker é uma figura central no campo da semântica formal contemporânea. Investigador no Institut Jean-Nicod (CNRS) e professor afiliado na New York University, tem vindo a expandir os limites da semântica tradicional, aplicando-a a domínios antes considerados periféricos, como a linguagem gestual, a música e até a comunicação animal. O seu trabalho destaca-se pela combinação rara de rigor lógico e abertura interdisciplinar, tentando construir pont...

Não-Humano (1948)

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Há livros que nos obrigam a confrontar o abismo da experiência humana, e há livros que apenas nos apontam esse abismo com indiferença. "Não-Humano", de Osamu Dazai, pretende ser o retrato cru da alienação moderna, mas o que encontrei foi antes o relato algo lânguido de uma existência parasitária, encenada com elegância mas vazia de verdadeiro impacto. A história gira em torno de Yozo, um jovem incapaz de se integrar na sociedade, desprovido de sentido existencial, movendo-se entre máscaras sociais, vícios e relações falhadas. Desde cedo se apresenta como alguém diferente, incompreendido, inadaptado – mas nunca se torna mais do que isso. O que poderia ser o ponto de partida para um confronto profundo com a condição humana transforma-se numa deriva repetitiva, onde o protagonista jamais se sujeita a um embate real com a vida. A escrita de Dazai é cuidada, por vezes até bela na sua secura. Mas o estilo nunca resgata a matéria: o protagonista não se constrói, não se revela, não s...

Ego Tunnel de Thomas Metzinger

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Em "The Ego Tunnel" (2010) Thomas Metzinger propõe uma tese radical sobre a natureza da consciência e do “eu”. O autor sugere que aquilo a que chamamos “consciência” é, na verdade, uma espécie de interface de realidade gerada pelo cérebro – um “túnel” onde apenas certas informações são filtradas e apresentadas à perceção consciente. Daqui decorre a conclusão de que o “self” – a noção de um “eu” sólido e coeso – constitui um produto do funcionamento cerebral, não tendo existência independente para além dessa representação interna.  Para Metzinger, a consciência não espelha fielmente o mundo externo; em vez disso, oferece-nos uma versão simplificada e funcional da realidade. Esse “túnel” assegura-nos uma experiência estável e contínua de “quem somos” e de “onde estamos”, mas ocultando a verdadeira complexidade do mundo. Para isto contribui muito do trabalho de Benjamin Libet que questiona existência de livre-arbítrio. Não concordando com um conjunto de pontos, decidi alinhar os...

A Parábola de Octavia E. Butler

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Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower  (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road  (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013) . Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros , viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas. Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilid...

Uma breve História da Inteligência

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" A Brief History of Intelligence: Evolution, AI, and the Five Breakthroughs That Made Our Brains " (2023) de Max Bennett é uma obra que nos transporta numa viagem fascinante pela evolução da inteligência humana, explorando como os avanços biológicos moldaram a nossa capacidade cognitiva e como essa visão tem vindo a informar o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Bennett identifica cinco transformações cruciais na evolução do cérebro biológico que suportariam os avanços na inteligência humana, cada um construído sobre o anterior para culminar na forma de inteligência que caracteriza hoje os seres humanos. O primeiro avanço, a Direção ( steering ) , refere-se à capacidade de se mover intencionalmente em resposta a estímulos. Este é o ponto de partida para qualquer forma de vida interagir com o ambiente de forma eficaz, permitindo aos organismos satisfazer necessidades básicas como encontrar alimento ou evitar predadores. A direção é fundamental para a sobrevivênci...

Jogar com a Realidade (2024)

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O livro " Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World " (2024) da neurocientista Kelly Clancy, é uma obra fascinante que explora a intrincada relação entre os jogos e a construção de realidade. Num tom académico, mas muito acessível, Clancy conduz o leitor por uma viagem histórica, filosófica e científica, demonstrando como os jogos, desde os mais simples aos mais complexos, têm influenciado e moldado as sociedades, as culturas e até mesmo a forma como percebemos o mundo, deixando alguns avisos claros sobre a excessiva crença nos mesmos. A autora estrutura o livro em torno de uma tese central: os jogos não são meras distrações ou passatempos, mas sim ferramentas poderosas que têm desempenhado um papel crucial na evolução humana. Clancy argumenta que os jogos são uma forma de simulação da realidade, algo que tenho vindo a considerar na última década, permitindo-nos experimentar, aprender e prever resultados em contextos controlados. Esta capacidade de "jogar...

"Fiasco" (1986) de Stanislaw Lem

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Stanislaw Lem (1921-2006) é considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX, tendo-se distinguido por uma produção prolífica que abrange 18 livros de ficção, dezenas de contos e dezenas de ensaios filosóficos. Fiasco , publicado em 1986, foi o último livro de ficção de Lem, coroando um percurso literário que inclui a sua obra de maior destaque, Solaris (1961) . Nesta sua derradeira obra, Lem retoma temas como a exploração do espaço e o confronto com inteligências alienígenas para questionar implicações éticas, políticas e filosóficas do desenvolvimento tecnológico. A ação arranca na órbita de Titã, uma lua de Saturno, com a nave espacial Eurydice a ser lançada numa missão que visa o estabelecimento de contacto com uma civilização alienígena situada numa “janela temporal” ótima, isto é, nem demasiado incipiente, nem demasiado avançada para se poder estabelecer comunicação. A bordo seguem militares, cientistas de várias áreas e um padre. Com estes, segue...

Platão nos anos 2000

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"Plato at the Googleplex" (2014) é um livro difícil, com algumas partes hilariantes que ajudam a ultrapassar as mais densas, mas que em essência me fizeram compreender de que é feita a filosofia que há tantos anos leio com entusiasmo. Neste trabalho Goldstein dá conta da atualidade das ideias de Platão, ao trazê-lo para os anos 2000, colocando-o a debater questões que continuam sem resposta desde a Antiga Grécia, evidenciando que apesar da evolução do conhecimento científico, a forma da filosofia continua atual. Nesse sentido, a dialética é a base, é ela mesma a própria filosofia. Importa o processo de argumentação e contra-argumentação, e não propriamente a meta, a resposta final. As grandes discussões assentam em paradoxos ou em equilíbrios de partes contraditórias, pelo que a discussão pode ser infinita, com Goldenstein a afirmar que o progresso é “invisible because it is incorporated into our points of view. . . . We don’t see it, because we see with it.” . Ou seja, a fil...