A manipulação de Graham Hancock (Netflix)
Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida, El Dorado, Shangri-La, Lemuria, Avalon, Agharta, etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.
A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos. "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos, pathos e logos —, mas nomeadamente pelo artifício mais básico da manipulação de massas — eternizado por Goebbels —, de que uma mentira dita mil vezes torna-se verdade. Ao longo de 8 episódios, as mesmas ideias são repetidas vezes sem conta, acrescentando-se pequenos fragmentos de informação em cada episódio para reforçar o que se vai repetindo. A repetição é tão massiva que se torna inescapável a quem não tiver um mínimo de literacia científica.
Começando pelo Ethos (ética). Graham Hancock apresenta-se como um grande estudioso da arqueologia, alguém com uma visão distinta, mas que uns supostos guardiões da verdade, chamados de Arqueólogos, têm censurado e marginalizado. Ou seja, o autor não suporta as ideias nos estudos que realizou, porque não realizou nenhuns (aqui voltarei), mas antes num contra-argumentário que ergue como a outra face da moeda. Uma outra visão, das evidências científicas encontradas. Assim, se a face A da moeda apresentada pelos arqueólogos é verdade, a face B, o outro lado da verdade, porque pertence à mesma moeda, também pode ser verdade.
Passando ao Pathos (emoção). Ao longo dos 8 episódios Hancock, apresenta-se como uma vítima, como o oprimido, acossado por todos. A vitimização é plasmada no queixume constante em todos os 8 episódios. A partir deste enquadramento, ataca violentamente toda a ciência, gritando para quem o quiser ouvir que:
- os cientistas censuram,
- os cientistas mentem,
- os cientistas só permitem uma narrativa,
- os cientistas impedem as pessoas de conhecer a verdade,
- e por fim, a linha preferida da extrema-direita, anti-ciência: “não confiem nos especialistas, procurem vocês mesmos as respostas”, num piscar de olho a Jordan Peterson.
Quanto ao Logos (lógica), tenho de dizer que é onde Hancock brilha. Partindo do problema de que não existem respostas para alguns dos mistérios apresentados, o jornalista simplesmente agarra em evidências espalhadas por todo o planeta, e monta uma história suportada numa estrutura de causa e efeito (uma narrativa). No final dos oito episódios, tudo faz pleno sentido. Tudo é explicado. Não há lugar à dúvida. Logo, resta aos espectadores a única hipótese possível, acreditar na visão de Hancock.
Contudo, neste ponto do logos, precisamos de atentar como trabalha o autor. Hancock não realizou qualquer trabalho de campo. Hancock não apresentou qualquer metodologia científica para a realização dos estudos. Hancock não apresentou qualquer artigo científico suportando os seus achados. Não o fez, porque Hancock não é um cientista. Hancock não realizou qualquer estudo científico. O que Hancock fez foi montar uma história com base em peças desgarradas que parecem fazer sentido. A isto chamamos a arte do mashup, ou seja, uma atividade criativa que consiste na colagem de diferentes elementos com vista à criação de novos significados. Isto é aquilo que fazem os artistas, e tem zero que ver com ciência.
A ciência não é uma história, a ciência não é um mito. A ciência constrói-se todos os dias com as evidências que vão sendo encontradas. Os cientistas não sabem o que se passou, como é que as coisas aconteceram como aconteceram, porque se limitam àquilo que as evidências podem demonstrar. O cientista porque não consegue explicar como surge um cancro, não pode desatar a procurar explicações na mitologia. Um cancro não surge porque um dia uma estrela verde atravessou o céu em pleno mês de agosto. O cientista também não fica parado a olhar para a estrela a tentar perceber porque é verde. O cientista continua a fazer o trabalho de formiga diário, de investigar evidências atrás de evidências, colaborando com milhões de outros cientistas, no sentido de encontrar respostas, até que um dia, tendo encontrado o Bacillus Calmette–Guérin (BCG), pode enfim contribuir para a cura da Tuberculose.
Dito isto, não tem qualquer interesse sequer tentar desmontar os vários argumentos apresentado por Hancock, pois eles não se sustentam na base, desde logo pela impossibilidade de interação à escala global como o autor tenta vender. Mitos como os que apresenta para os vários monumentos existem aos milhares no planeta, fazem parte daquilo que somos enquanto seres detentores de imaginação. Basta olhar para a Bíblia para ver de que é feita a crença de milhões de seres humanos ainda hoje.
Ainda assim, existem alguns pontos que vale a pena pensar, para além do facto do autor não apresentar um único estudo feito por si:
- Se um cataclismo destruiu essa tal civilização avançada anterior, mas alguns sobreviveram para ir pelo mundo espalhar a palavra (tal como os missionários cristãos!), porque é depois se voltaram extinguir? Todos os lugares apresentados, foram, segundo ele, construídos no final da Idade do Gelo graças ao conhecimento que vinha de trás, no entanto todas as civilizações desses mesmos lugares acabaram por sucumbir depois. Qual foi então o cataclismo subsequente que fez desaparecer cada uma dessas?!
- Se todos esses lugares foram criados no final da Idade do Gelo, porque é que apenas existem evidências desse tempo em Göbekli Tepe?
- Como é que se explica a ausência de resquícios dessa civilização, a apenas alguns milhares de anos de distância, quando podemos encontrar evidências da existência de dinossauros com milhões de anos?
Se quiserem uma teoria com maior sustentação capaz de explicar os vários lugares identificados por Hankock, no tempo em que a ciência nos diz que foram construídos, convido-vos a ler antes “The Dawn of Everything: A New History of Humanity” (2021) escrita pelo antropologista David Graeber e o arqueologista David Wengrow. Nesta, os autores analisam estes mesmos lugares, mais alguns, para inverter a ideia de que o conhecimento e a criação tecnológica não provieram da agricultura, uma das grandes narrativas que sustenta a história da humanidade. Para Graeber e Wengrow, o simples facto dos humanos se poderem juntar em aglomerados terá sido suficiente para potenciar o incremento tecnológico, sem necessidade de conhecerem a agricultura. Reparem como esta é apenas uma pequena variação na ideia central promovida pelos principais arqueólogos, não temos aqui meteoritos, nem cataclismos, nem apocalipses, nem deuses ou serpentes. Mas, ainda assim, é uma mudança com grande alcance, já que altera drasticamente a ideia de que a criação e evolução civilizacional dependeria de condições económicas específicas. Para compreender o que está na base desta visão dos autores, é preciso perceber que estes se suportam numa visão de sociedade assente em príncipios anarquistas.
Uma nota final, sobre tudo isto, não por ser arqueólogo, que como já disse não sou, mas porque tenho lido bastante nos últimos anos sobre a História das civilizações, e aquilo que tenho verificado, vai no sentido contrário ao que Hankock aqui nos pretende induzir. A revolução do conhecimento que nos trouxe o gigante progresso tecnológico a que chegámos no século XXI, começou exatamente na Grécia Antiga, quando decidimos começar a substituir as bases da Explicação da Realidade assentes em causas e efeitos de Mitos pelo trabalho de observação da Ciência.
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