A extinção da razão

 “The Extinction of Experience: Being Human in a Disembodied World” (2024) era um livro que eu queria muito ler e queria muito gostar. Mas Christine Rosen não escreveu um livro sobre a Experiência Humana, antes listou um rol de queixas contra as mais recentes tecnologias de comunicação — ecrãs, smartphones, rede sociais, realidade virtual, IA, etc —, falhando na sustentação com evidências para a maior parte dessas queixas. Não basta citar um artigo aqui e um estudo ali. As evidências de impactos sociais, mais ainda no caso dos psicológicos, requerem amplos estudos, muito acima dos normais 30, 40 ou 60 individuos dos estudos isolados. Requerem replicação cuidada nas mais diversas culturas e circunstâncias e manutenção das condições e evidências ao longo do tempo. Utilizar estudos isolados para tecer causalidades sobre o estado da civilização como um todo é ingenuidade, para não dizer algo pior. Tanto aqui, como no outro, muito mais badalado, e já traduzido em Portugal, livro, “A Geração Ansiosa” (2024) de Jonathan Haidt, o que está em questão é o normal fenómeno de “pânico moral”, que já aconteceu com a televisão, com a banda desenhada, com a música popular, e até com os romances há mais de dois séculos.

“As mulheres, de todas as idades, de todas as condições, contraem e conservam o gosto pelos romances [...] A depravação é universal. A minha vista é ofendida em todo o lado por estes livros tolos, mas perigosos. Encontro-os na toilette da moda e no saco de trabalho da empregada; nas mãos da senhora que descansa no sofá e da senhora que se senta ao balcão. Das patroas dos nobres descem até às patroas das lojas de tabaco - das beldades que os lêem na cidade, até às moças que os soletram no campo. Já vi mães, em mansardas miseráveis, a chorar pela angústia imaginária de uma heroína, enquanto os filhos choravam por pão; e a dona de uma família a perder horas com um romance na sala de estar, enquanto as suas criadas, em emulação do exemplo, estavam igualmente ocupadas na cozinha. Já vi uma escrava com um pano de prato numa mão e um romance na outra, a soluçar sobre as tristezas de uma Júlia ou de uma Jemima.” Excerto de "Sylph", no. 5, 6 de outubro de 1796 (36-37)

Temos muita dificuldade em lidar com o novo, com a mudança, mas também com a autonomia e independência dos que nos rodeiam — “estão para ali fechados, sobre si próprios, num livro ou no telemóvel, a ignorar-me”. E quando há problemas societais é preciso respostas, por isso nada melhor do que apontar baterias ao mais recente "rei da parada". Ainda não ganhou raízes, tem poucos defensores, não se conhecem os reais impactos porque ainda não passou tempo suficiente. Por isso, dizer que o problema está ali, mesmo que estejamos errados é imune à crítica, pois só o tempo o dirá. No entretanto, vamos apresentando alegadas soluções, e criando seguidores. 

Se os médicos e os enfermeiros estão, alegadamente, menos empáticos, é porque estão a ser treinados com simuladores e a usar telemóveis! Se os pais deixaram morrer o filho à fome, a culpa é dos videojogos que estavam a jogar! Se uma turista americana decidiu viajar sozinha para Istambul e foi assassinada numa das zonas pobres, é porque os sistemas do iPhone a fizeram acreditar que estaria segura! Se as pessoas apresentam, alegadamente, maiores níveis de raiva nas estradas, dispostas a dar um tiro a quem lhes passa a frente e faz um pirete, é porque as tecnologias as tornaram mais impacientes, incapazes de esperar!

Nada disto faz sentido, e tudo isto foi escrito no livro de Rosen. Não vou dizer que não existem impactos, efeitos, alterações, porque tudo aquilo com que lidamos provoca transformações em nós. A tecnologia, toda ela, desde o fogo, produz enormes impactos naquilo que somos. Pelo que precisamos de estar atentos, discutir o assunto, estudar e aprofundar o mesmo, mas não nos podemos deixar embandeirar em simplismos. Porque nada desses impactos transformadores são simples ou visíveis no imediato. 

Os romances que alegadamente criavam dependência nas mulheres e as impediam de fazer os seus trabalhos diários, são os mesmos que lhes ofereceram visões de autonomia e emancipação, permitindo-lhes compreender os outros e a si mesmas. A televisão que tanto mal fazia à cabeça das criancinhas foi durante décadas o catalisador das conversas em família ao jantar, a cola de um mundo de ideias comuns entre colegas de trabalho, com os amigos, com a família, com a nação. Todos estes média potenciaram a comunicação mediada, mas ao fazê-lo potenciaram o crescimento pessoal, por via de uma compreensão mais detalhada de si e do outro. Porque na relação com estes objetos o ser humano teve a oportunidade de parar para pensar em quem era, vendo exemplos amplos de ações e escolhas, conseguindo assim antecipar os seus próprios erros futuros. 

A comunicação mediada não tornou o ser humano incapaz de reflexão ou de ação, antes pelo contrário, tornou-o mais consciente da espécie a que pertence, da amplitude de respostas que são possíveis para o mesmo problema, tornou-o mais autónomo e capaz de pensar criticamente.

Defender que temos de abolir todas estas tecnologias e voltar ao belo mundo do antigamente, todos a confraternizar com todos sempre, é não querer compreender que todos aqueles que cresceram, se formaram intelectualmente, desenvolvendo o seu espírito crítico, sempre tiveram de se retirar desses processos de comunhão durante largos períodos da sua vida (ver o caso de Montaigne), para se dedicarem à interação com objetos mediados — escrita, leitura, observação, testemunhar, visualizar, ouvir, etc.


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