Eu Que Nunca Conheci Homens (1995)

“I Who Have Never Known Men” (1995) de Jacqueline Harpman parece ser apenas mais uma distopia feminina, na senda de “A História de uma Serva (1985)” de Margaret Atwood, contudo, em termos do questionamento que nos faz, está em linha com todas as outras grandes distopias — “Nós” (1921) de Evguén Zamiátin, "Metropolis" (1927) Fritz Lang, "Admirável Mundo Novo" (1932) Aldous Huxley, "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro" (1948) George Orwell, "Fahrenheit 451" (1953) Ray Bradbury. Diria mesmo que de todas estas é a mais ampla e profunda, para o que terá contribuído o facto de Jacqueline Harpman ser psicanalista.

O livro foi escrito em 1995 e lançado sem grande impacto. Harpman era belga, com uma carreira limitada ao mercado francófono. Contudo, em 2019 quando a Penguin (através da Vintage) resolveu traduzir o livro para inglês e lançá-lo por meio de uma forte campanha online viria a atingir a viralidade no TikTok. A campanha foi acompanhada por ações mais tradicionais, como um cartaz, em Londres, que parece emergir do chão (ver imagens abaixo). Depois disso, o livro foi traduzido para uma dúzia de línguas, incluindo português do Brasil, surgindo amiúde em listas e referências sobre distopias, melancolia, e sobre o propósito da vida.


Campanha da BuildHollywood, em que "o cartaz aparenta emerge de baixo da superfície, rodeada por fragmentos de lajes de pavimento partidas que foram quebradas durante a ascenção do mundo subterrâneo."

“I Who Have Never Known Men” segue o género de distopia, mas distingue-se pelo facto de oferecer mais questões do que respostas, o que talvez explique porque não teve sucesso nos anos 1990, quando a cultura vivia ainda muito dependente de explicações e respostas claras. No momento atual, o livro encaixa na perfeição na cultura do online ao potenciar as discussões em rede sobre os significados do livro. A seu favor tem ainda o facto de ser uma das poucas distopias escritas a partir do olhar feminino.

A narrativa centra-se num mundo particular em que grupos de 40 pessoas vivem prisioneiras em bunkers, guardadas por grades e guardas, até ao dia em que as portas se abrem, conseguindo escapar, para à superfície encontrar um planeta quase deserto. O ponto de vista é fornecido por uma miúda de 16 anos que acompanhamos ao longo dos anos seguintes, e com quem aprendemos a empatizar. O mundo que vamos conhecer é não só bastante austero, como praticamente incapaz de fornecer respostas tanto para o quê, o como, ou o porquê. Mas é esta frugalidade de informação que torna a distopia tão poderosa, exigindo que cada um de nós interprete o mundo à sua maneira.

A particularidade do processo narrativo de Harpman assenta na forma como consegue imprimir melancolia em descrições e ações breves, à partida sem amplitude, mas que rapidamente tomam conta de nós e nos fazem sentir intensamente aquele mundo. Tendo lido o livro em formato audio, acredito que a narração de Sarah Lambie serviu na intensificação dessa emocionalidade.

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