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A Parábola de Octavia E. Butler

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Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower  (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road  (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013) . Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros , viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas. Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilid...

Uma breve História da Inteligência

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" A Brief History of Intelligence: Evolution, AI, and the Five Breakthroughs That Made Our Brains " (2023) de Max Bennett é uma obra que nos transporta numa viagem fascinante pela evolução da inteligência humana, explorando como os avanços biológicos moldaram a nossa capacidade cognitiva e como essa visão tem vindo a informar o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Bennett identifica cinco transformações cruciais na evolução do cérebro biológico que suportariam os avanços na inteligência humana, cada um construído sobre o anterior para culminar na forma de inteligência que caracteriza hoje os seres humanos. O primeiro avanço, a Direção ( steering ) , refere-se à capacidade de se mover intencionalmente em resposta a estímulos. Este é o ponto de partida para qualquer forma de vida interagir com o ambiente de forma eficaz, permitindo aos organismos satisfazer necessidades básicas como encontrar alimento ou evitar predadores. A direção é fundamental para a sobrevivênci...

Jogar com a Realidade (2024)

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O livro " Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World " (2024) da neurocientista Kelly Clancy, é uma obra fascinante que explora a intrincada relação entre os jogos e a construção de realidade. Num tom académico, mas muito acessível, Clancy conduz o leitor por uma viagem histórica, filosófica e científica, demonstrando como os jogos, desde os mais simples aos mais complexos, têm influenciado e moldado as sociedades, as culturas e até mesmo a forma como percebemos o mundo, deixando alguns avisos claros sobre a excessiva crença nos mesmos. A autora estrutura o livro em torno de uma tese central: os jogos não são meras distrações ou passatempos, mas sim ferramentas poderosas que têm desempenhado um papel crucial na evolução humana. Clancy argumenta que os jogos são uma forma de simulação da realidade, algo que tenho vindo a considerar na última década, permitindo-nos experimentar, aprender e prever resultados em contextos controlados. Esta capacidade de "jogar...

"Fiasco" (1986) de Stanislaw Lem

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Stanislaw Lem (1921-2006) é considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX, tendo-se distinguido por uma produção prolífica que abrange 18 livros de ficção, dezenas de contos e dezenas de ensaios filosóficos. Fiasco , publicado em 1986, foi o último livro de ficção de Lem, coroando um percurso literário que inclui a sua obra de maior destaque, Solaris (1961) . Nesta sua derradeira obra, Lem retoma temas como a exploração do espaço e o confronto com inteligências alienígenas para questionar implicações éticas, políticas e filosóficas do desenvolvimento tecnológico. A ação arranca na órbita de Titã, uma lua de Saturno, com a nave espacial Eurydice a ser lançada numa missão que visa o estabelecimento de contacto com uma civilização alienígena situada numa “janela temporal” ótima, isto é, nem demasiado incipiente, nem demasiado avançada para se poder estabelecer comunicação. A bordo seguem militares, cientistas de várias áreas e um padre. Com estes, segue...

O sofrimento na literatura

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"Ceci n’est pas un fait divers" (2023) de Philippe Besson é uma obra que aborda o feminicídio através da escalpelização psicológica dos efeitos emocionais deste evento traumático numa família. O ponto de vista é distinto, já que apresentado pelos olhos do irmão mais velho (19), que fica para cuidar da irmã mais nova (13). Contudo, se a intensidade emocional da experiência é elevada, o livro levanta-me questões sobre os propósitos da literatura. Um dos pontos fortes do livro é a gestão de informação e de emoção por Besson, que demonstra habilidade no controlo do suspense e na criação de dor no leitor. Os embates emocionais são particularmente intensos no início e no final da narrativa, levando o leitor através de uma montanha-russa psicológica. Este mergulho profundo no sofrimento das personagens permite um acesso privilegiado ao trauma do acontecimento. Por outro lado, revela um dos principais problemas da obra pelo modo como se centra quase exclusivamente no evento ocorri...

A genealogia de um assassino

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O suspense é bem desenvolvido e mantido, mesmo que estejamos à espera de um pouco mais. Esta é uma das primeiras impressões que podem ter "The Breakthrough" (2024), uma série policial em quatro partes da Netflix que dá conta de um um acontecimento real, ocorrido na cidade de Linköping, Suécia, em 2004, quando um duplo homicídio (incluindo uma criança de 8 anos) foi perpetrado num bairro residencial, às 8h30 da manhã, não tendo sido encontrado o assassino durante 16 anos, apesar da investigação ter sido mantida sempre ativa. A resposta aos familiares das vítimas só chegaria em 2020, depois de se ter recorrido a um método comercial de reconstrução de árvores genealógicas familiares. Cada episódio tem cerca de 40 minutos, o que faz com que a experiência completa tenha pouco menos de três horas, ou seja, poderia ter sido um filme. Não teria sido diferente, pelo menos em termos da experiência de binging, mas destaco o tom estético da série que é altamente coerente, apoiado por des...

O nascer do Oeste americano

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A série "American Primeval" (2025), dirigida por Peter Berg, representa uma disrupção dos cânones narrativos e estéticos do género Western. O argumento da série, de Mark L. Smith, oferece uma desconstrução do Western clássico, recusando a glamourização de heróis, pioneiros e mesmo nativos. Explora-se o sofrimento humano, a violência sistémica e as profundas ambiguidades morais que moldaram a expansão para o Oeste americano.  Com uma escrita arrojada, cinematografia imersiva e performances notáveis, este novo olhar redefine um mundo que tem sido mitificado com base numa imaginário longe da realidade. O trabalho de câmara e fotografia, destaca-se por uma abordagem crua e atmosférica. O uso de paletas de cores frias e sombrias e de enquadramentos sobre a vastidão das paisagens conferem à série um tom introspectivo. A natureza pode ser bonita, mas não deixa de ser mais um elemento hostil que condiciona a vida e as relações interpessoais naquele lugar, recordando "Butcher...