Mensagens

Sentir antes de dizer

Imagem
O livro " Sentience: The Invention of Consciousness " (2022) de Nicholas Humphrey propõe uma explicação funcional da consciência que a aproxima de uma estratégia evolutiva de sobrevivência. A sua tese central distingue entre dois tipos de consciência — a cognitiva e a fenomenológica —, sendo esta última a que dá cor e textura à experiência de estar vivo. Humphrey descreve a consciência não como uma janela para o mundo, mas como um palco interno onde o organismo sente o impacto de estar no mundo. Viver, para Humphrey, é assum mais do que existir, é sentir.  Este ponto de partida, que aproxima a consciência da emoção, sugere uma base comum com autores como António Damásio (1994), para quem a consciência emerge do corpo e das emoções que regulam a sua homeostasia. No entanto, à medida que o livro avança, Humphrey hesita em assumir essa ligação plena. Quando se aproxima da animalidade ou do corpo como sede do sentir, recua para explicações adaptativas, evitando nomear a emoção....

A Mentira da Simetria

Imagem
"If only I’d known then that I was your mirror image" diz Katharina no epílogo de  Kairos  (2021) de Jenny Erpenbeck, como se essa frase final pudesse resgatar tudo o que ficou para trás. Hans — homem mais velho, manipulador, e, como se descobre no final, informador da STASI — é retratado sem crítica ao longo de uma relação profundamente desequilibrada. O Booker International Prize 2024 consagrou este livro como uma obra-prima da literatura europeia contemporânea. Mas para quem lê com atenção, a experiência termina com desilusão e frustração. Porque Kairos apresenta-se como um romance sobre a queda de um regime e o impacto disso nas relações íntimas, mas acaba por normalizar uma história de abuso emocional. Erpenbeck tem ambição formal e escreve com domínio técnico. Há momentos em que parece que o livro se vai transformar numa análise séria do entrelaçamento entre amor e poder, vigilância e desejo. Mas nas páginas finais, quando tudo devia ganhar clareza ou consequência...

Connemara (2022)

Imagem
Peguei no Connemara  (2022) de Nicolas Mathieu movido por uma nostalgia difícil de explicar. Talvez fosse a capa, que me fazia lembrar viagens, ou a vontade de revisitar o passado através das palavras de alguém que, como eu, parece ter percebido que a vida raramente corresponde aos sonhos que construímos. Logo nas primeiras páginas, senti que o livro me falava diretamente: o cansaço com o presente, a sensação de não ter chegado a lado nenhum, a ideia de que tudo aquilo que parecia tão importante na juventude acabou por se dissipar, transformando-se em recordações que resistem apenas pela força da memória. À medida que avançava na leitura, percebi que a única salvação que o autor nos dá — ou talvez o único consolo — é a possibilidade de regressar a esse lugar interior onde guardamos, entre fracassos e conquistas, as memórias que nos formaram. Um refúgio sentimental, onde, mesmo que tudo pareça desfeito, encontramos ainda algum conforto emocional. Foi isso que me agarrou ao livro, ma...

A Guardiã (2024)

Imagem
Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer.  A Guardiã (2024)  de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque  narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar. Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a ...

Quando a Justiça está no Silêncio

Imagem
Várias críticas recentes à série " Secrets We Keep " (2025), da Netflix, apontam a forma como a narrativa falha em fazer justiça a Ruby, a jovem au pair filipina que desaparece sem que ninguém — nem os empregadores, nem a polícia, nem o Estado — realmente lute por ela. Um comentário em particular, vindo de um espectador filipino, afirma que o sofrimento de Ruby é usado como “ruído de fundo” para proteger o conforto dos brancos. É um olhar que compreendo, mas com o qual profundamente discordo.  A série não ignora Ruby — a Dinamarca é que o faz. E a série, ao mostrar isso sem filtros, sem consolo narrativo, está precisamente a denunciar esse apagamento. O que nos inquieta em Secrets We Keep não é o que a série esconde, mas sim aquilo que expõe de forma brutal: uma sociedade que não reconhece humanidade plena às suas cuidadoras, nem mesmo quando elas desaparecem, nem mesmo quando são vítimas de crimes hediondos. Se Katarina e o seu marido fossem punidos, estaríamos a ver uma f...

Destruição Social

Imagem
A série Little Bird é uma obra televisiva canadiana que nos mergulha no terror das consequências do " Sixties Scoop ", um período sombrio da história do Canadá. Durante as décadas de 1950 a 1980, milhares de crianças indígenas foram removidas à força das suas famílias e comunidades, sendo adoptadas por famílias não indígenas. Esta política visava a assimilação cultural, mas acabou por se transformar numa ação de profunda destruição social, criando traumas profundos na identidade de todos os envolvidos. A série é baseada em factos reais . A narrativa da série centra-se em Bezhig Little Bird, interpretada por Darla Contois, uma mulher indígena adoptada por uma família judaica em Montreal. Ao longo dos episódios, acompanhamos a sua autodescoberta e o modo como se tenta religar às suas raízes, enfrentando tudo e todos, num autêntico carrossel de emoções intensas decorrentes da adoção forçada. A série destaca-se pela abordagem psicológica de temas complexos, como identidade, pert...

Contra Camus

Imagem
"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido. A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança. A geografia e a emoção de "Meursau...