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Notas sobre "Everything Must Go" (2025)

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Terminei recentemente a leitura de Everything Must Go: The Stories We Tell About the End of the World de Dorian Lynskey, ou, para ser honesto, li até ao meio e depois fui lendo na diagonal. Não que o livro não tenha o seu valor. Lynskey apresenta um levantamento cronológico impressionante das narrativas sobre o fim do mundo, começando na Bíblia e avançando pelos séculos, atravessando temas como o último homem, a bomba, as máquinas ou pandemias. Um trabalho árduo, sem dúvida. Porém, a sensação dominante ao virar cada página foi a de uma oportunidade desperdiçada. O problema não está sequer na escolha de um enfoque marcadamente ocidental e cristão — uma limitação evidente, mas que aceitaria se viesse acompanhada de uma proposta clara. O verdadeiro vazio do livro reside naquilo que nele falta: pensamento. Lynskey faz um inventário, mas nunca arrisca uma interpretação, nunca procura responder ao que estes mitos e medos revelam sobre nós enquanto espécie, cultura ou sociedade. Tudo se...

Adolescence (2025): O realismo da incompreensão

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Em tempos de saturação audiovisual, quando tudo parece já ter sido tentado e filmado, surge uma série capaz de nos desarmar por completo. "Adolescence" (2025) , cocriada por Stephen Graham e Jack Thorne, impõe-se como uma experiência tão avassaladora quanto singular, não apenas pelo que mostra, mas sobretudo pelo que recusa mostrar. A série apresenta-se em quatro episódios, cada um filmado num único plano-sequência contínuo, conjugado com grandes planos (close-ups) sufocantes, criando uma imersão emocional de intensidade quase insuportável. A técnica formal não é mero exercício de estilo. O uso do plano-sequência sem cortes, aliado à proximidade extrema dos rostos das personagens, elimina qualquer possibilidade de distanciamento. Somos arrastados para dentro do espaço emocional dos protagonistas sem respiro, sem possibilidade de fuga. A câmara não nos oferece alívio; ao contrário, mantém-nos reféns, obrigando-nos a confrontar cada expressão, cada silêncio, cada hesitação. Lem...

Ego Tunnel de Thomas Metzinger

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Em "The Ego Tunnel" (2010) Thomas Metzinger propõe uma tese radical sobre a natureza da consciência e do “eu”. O autor sugere que aquilo a que chamamos “consciência” é, na verdade, uma espécie de interface de realidade gerada pelo cérebro – um “túnel” onde apenas certas informações são filtradas e apresentadas à perceção consciente. Daqui decorre a conclusão de que o “self” – a noção de um “eu” sólido e coeso – constitui um produto do funcionamento cerebral, não tendo existência independente para além dessa representação interna.  Para Metzinger, a consciência não espelha fielmente o mundo externo; em vez disso, oferece-nos uma versão simplificada e funcional da realidade. Esse “túnel” assegura-nos uma experiência estável e contínua de “quem somos” e de “onde estamos”, mas ocultando a verdadeira complexidade do mundo. Para isto contribui muito do trabalho de Benjamin Libet que questiona existência de livre-arbítrio. Não concordando com um conjunto de pontos, decidi alinhar os...

O Ministério da Perda de Tempo

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“O Ministério do Tempo” (2024) de Kaliane Bradley foi promovido com toda a pompa em termos de marketing, conseguindo acumular mais de um milhar de críticas no Goodreads antes mesmo do seu lançamento. Muitas delas descreviam-no como algo totalmente original. Interessei-me pelo lado da ficção científica, mas o livro revelou-se não só fraco na estrutura narrativa e na escrita, como também desprovido de originalidade. O marketing foi tão bem feito que o título chegou a figurar entre os nomeados para diversos prémios: Audie Award Nominee for Fiction (2025), Women's Prize for Fiction Nominee for Longlist (2025), Goodreads Choice Award for Science Fiction e Nominee for Debut Novel (2024) . O livro saiu em maio de 2024 e, ao longo do ano, as avaliações mantiveram-se consistentemente acima de 4 estrelas. No entanto, ao revisitá-lo agora, vejo que a sua média desceu para 3.6 – muito mais próximo das 2 estrelas que tenho para lhe atribuir. Começando pela história. A premissa de transportar p...

A Parábola de Octavia E. Butler

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Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower  (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road  (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013) . Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros , viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas. Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilid...

Uma breve História da Inteligência

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" A Brief History of Intelligence: Evolution, AI, and the Five Breakthroughs That Made Our Brains " (2023) de Max Bennett é uma obra que nos transporta numa viagem fascinante pela evolução da inteligência humana, explorando como os avanços biológicos moldaram a nossa capacidade cognitiva e como essa visão tem vindo a informar o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Bennett identifica cinco transformações cruciais na evolução do cérebro biológico que suportariam os avanços na inteligência humana, cada um construído sobre o anterior para culminar na forma de inteligência que caracteriza hoje os seres humanos. O primeiro avanço, a Direção ( steering ) , refere-se à capacidade de se mover intencionalmente em resposta a estímulos. Este é o ponto de partida para qualquer forma de vida interagir com o ambiente de forma eficaz, permitindo aos organismos satisfazer necessidades básicas como encontrar alimento ou evitar predadores. A direção é fundamental para a sobrevivênci...

Jogar com a Realidade (2024)

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O livro " Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World " (2024) da neurocientista Kelly Clancy, é uma obra fascinante que explora a intrincada relação entre os jogos e a construção de realidade. Num tom académico, mas muito acessível, Clancy conduz o leitor por uma viagem histórica, filosófica e científica, demonstrando como os jogos, desde os mais simples aos mais complexos, têm influenciado e moldado as sociedades, as culturas e até mesmo a forma como percebemos o mundo, deixando alguns avisos claros sobre a excessiva crença nos mesmos. A autora estrutura o livro em torno de uma tese central: os jogos não são meras distrações ou passatempos, mas sim ferramentas poderosas que têm desempenhado um papel crucial na evolução humana. Clancy argumenta que os jogos são uma forma de simulação da realidade, algo que tenho vindo a considerar na última década, permitindo-nos experimentar, aprender e prever resultados em contextos controlados. Esta capacidade de "jogar...