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El Eternauta (1957-2025)

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Comecei a ver The Eternaut  na Netflix atraído pela imagem da máscara e pelo azul saturado que parecia definir o tom da série. Havia ali algo que me puxava. Ainda assim, quando percebi que era uma produção da América Latina, quase desisti. Tinha receio que fosse mais uma série no registo de telenovela, como tantas outras. Mas as críticas internacionais eram tão positivas, que decidi continuar. No primeiro episódio, a série lançou-me num território visual que me fez pensar em Metro , o videojogo russo . O ambiente de neve tóxica, as máscaras, os corpos caídos nas ruas — havia ali uma composição quase poética. A morte não era choque, era quase uma aceitação — corpos dispostos como quadros numa galeria. Mas à medida que os episódios avançavam, especialmente a partir do terceiro, o tom começou a mudar. A sensação de uma invasão alienígena, a ameaça que se insinua entre os sobreviventes, começaram a evocar War of the Worlds e Invasion of the Body Snatchers . A série parecia abra...

Dalva e o Cinema do Pós-Trauma

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Fui para Dalva à espera de comoção. Esperava que a história de uma menina abusada pelo pai me esmagasse, me revoltasse, me fizesse chorar. Mas o que encontrei foi algo muito mais raro: um filme que recusa a catarse e, com isso, devolve ao espectador o trabalho de pensar. Dalva , de Emmanuelle Nicot, não dramatiza o trauma, não exibe as feridas, não nos conduz pela mão. O que vemos é o depois imediato , o espaço vazio entre o fim de uma relação abusiva e a reconstrução de uma vida possível. E é nesse tempo narrativo pouco explorado que reside a sua força. A protagonista, Dalva, tem 12 anos. Mas comporta-se, move-se e veste-se como uma mulher adulta. Não há exagero, nem histeria. A violência está no descompasso. Os gestos, os olhares, o modo como cruza as pernas — tudo nela parece aprendido. O seu corpo é um palco. Mas o guião já não lhe serve. A realização é contida, rigorosa. A câmara observa sem invadir. A montagem corta antes da explicação. O guião é admirável pela sua contenção: ...

Preferia Não o Fazer

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Durante anos, mantive uma distância cautelosa de Herman Melville. A leitura de "Moby Dick" (1851) deixou-me com a sensação de um autor excessivamente enredado em descrições prolixas e atmosferas densas, características que me afastaram do seu universo literário. No entanto, ao deparar-me com "Bartleby, o Escrivão" (1853), fui surpreendido por uma narrativa que se desvia radicalmente daquele estilo: direta, sucinta e despojada. A estranheza foi tal que tive de confirmar duas vezes se o autor era o mesmo.​ "Bartleby" apresenta-se como uma anomalia literária do século XIX, antecipando preocupações formais e temáticas que só viriam a ser plenamente exploradas no modernismo do século XX. A escrita de Melville aqui é contida, quase minimalista, contrastando com o seu estilo anterior. Esta mudança não é apenas estilística, mas reflete uma profunda transformação na abordagem do autor à narrativa e ao significado.​ Neste texto, proponho uma reflexão sobre como ...

A loucura que não chega para quebrar a fantasia

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Realizado por Benoît Delhomme, Mothers' Instinct (2024) adapta o romance belga "Derrière la haine" (2013) de Barbara Abel , trazendo para o ecrã a história de duas mães cuja amizade é corroída por uma tragédia. Anne Hathaway e Jessica Chastain lideram um filme que parece, à superfície, um thriller psicológico tradicional — mas que, no seu subsolo, expõe algo mais inquietante — a derrocada de uma alma mascarada pela preservação da perfeição de uma era passada. Interpretado de forma magnífica pelas duas atrizes, o filme começa num compasso lento, impregnado de pequenos gestos quotidianos que ocultam tensões subterrâneas. Depois, acelera — primeiro timidamente, depois de forma vertiginosa — até mergulhar numa espiral de decisões insanas que culminam numa insanidade silenciosa, tão subtil que quase se confunde com a normalidade. É precisamente nesse bordado entre o realismo psicológico e a estrutura de thriller que o filme opera: encena uma época passada — os anos 1950 — mas ...

A Vida é Difícil (2022)

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Kieran Setiya, professor de filosofia no MIT, não oferece ilusões em Life is Hard . Desde o início, reconhece que os problemas da vida — pessoais, políticos, existenciais — são demasiado grandes para serem resolvidos apenas pela razão. Mas a filosofia, ainda assim, pode oferecer algo: não a cura, mas apaziguamento. Este livro é menos um tratado sistemático do que um passeio reflexivo. Setiya convoca grandes nomes — Iris Murdoch, Virginia Woolf, Simone Weil, Adorno, Marx, a Escola de Frankfurt — mas fá-lo com uma leveza rara no meio académico. Nunca pesa sobre o leitor; antes conduz-nos como quem conversa ao final da tarde, sentado à sombra, olhando o mar. Recuperando conceitos do seu livro anterior, Midlife: A Philosophical Guide , Setiya revisita a distinção entre atividades télicas (com um fim) e atélicas (sem fim), mas desta vez reconhece abertamente a importância da narrativa. É importante chegar ao fim e obter sentido, criar significado, não podemos é transformar tudo na vida ...

Paradise (2025)

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A nova série Paradise , da Disney, trouxe uma promessa ambiciosa: um thriller político pós-apocalíptico com uma estética trabalhada e um ritmo narrativo intenso. Criada por Dan Fogelman, a série apresenta um cenário intrigante – um bunker subterrâneo no Colorado, anos após um evento catastrófico, onde um agente do Serviço Secreto (Sterling K. Brown) investiga o assassinato do Presidente dos EUA. Mas, para além do enredo, o que me capturou foi a sua abordagem estética e estrutural – e, infelizmente, também a sua incapacidade de manter a excelência inicial. Os primeiros dois episódios de Paradise estão entre o melhor que já se fez em televisão. A série inicia com um impacto tremendo, criando uma tensão quase palpável através da montagem ágil, dos enquadramentos precisos e da utilização de silêncios e diálogos afiados. Há um minimalismo visual que funciona magistralmente – a contenção da mise-en-scène amplifica o sentido de urgência, obrigando o espectador a absorver cada detalhe com um...

Super Negligência

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Hoffman quer muito que acreditemos que a IA será o trampolim da humanidade. Que não há monstros debaixo da cama — só oportunidades. Mas a crença não basta. Superagency vende-se como um manifesto tecno-humanista, mas o que entrega é um panfleto corporativo disfarçado de visão ética. Hoffman procura afastar os fantasmas do apocalipse digital, mas ao fazê-lo apaga também os sinais de alarme. O tratamento que dá a obras como 1984 é revelador.  Mais do que ingenuidade, o forma como Hoffman aborda  1984 revela um perigoso vazio interpretativo. Ao sugerir que Orwell falhou ao não explorar as “possibilidades comunicacionais” dos telescreens, Hoffman transforma um dos símbolos mais densos da opressão moderna num defeito técnico — como se a distopia fosse um erro de design. A frase “the fact that you can be overheard also means you can be heard” ignora o papel central do medo e da vigilância internalizada nos regimes autoritários. Pior: pressupõe que bastaria vontade política para t...