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Proust, roman familial (2023), Laure Murat

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Há uma aristocracia francesa que sobreviveu à Revolução sem nunca verdadeiramente cair. Não desapareceu: adaptou-se. Conservou títulos, rituais e, acima de tudo, uma forma de estar onde tudo se decide na superfície: nos modos, na contenção, na etiqueta, que funcionam como código moral. Laure Murat nasceu dentro desse mundo. É a partir dessa origem que escreve " Proust, roman familial" (2023). O livro não é um estudo académico sobre " A la Recherche du Temps Perdu " (1913-1927). É mais íntimo e mais incisivo: Murat lê Proust a partir da ferida de ter pertencido ao mesmo universo que ele descreveu e criticou. E, ao fazê-lo, mostra que a aristocracia francesa não é um resquício do passado, mas uma forma de vida ainda ativa, estrutural, discreta e eficaz. A ideia central é simples e terrível: na aristocracia, a vida não se vive, representa-se.  A imagem é a lei. A intimidade, o desejo, o sofrimento, a identidade, tudo deve permanecer dentro do quadro previamente defini...

Vadio (2022), Simão Cayatte

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Há filmes em que o poder não vem do guião, mas da forma como a câmara decide existir no espaço. Vadio é um desses filmes. A história de dois jovens que se encontram num país cansado poderia ter caído na ilustração moral ou no comentário social previsível. Mas Cayatte filma de perto — quase demais — e essa proximidade altera tudo. A câmara está colada ao corpo. Não observa: acompanha. O movimento dos ombros, o respirar curto, a maneira de desviar o olhar; é aí que se joga o filme. A referência é clara: os irmãos Dardenne. A narrativa não se constrói por explicação psicológica, mas pela força física de estar no mundo. É por isso que Rubén Simões, o miúdo, carrega o filme. Ele não interpreta sofrimento: ele move-se como alguém que o conhece. Há verdade no gesto, no ritmo com que suporta a rua, no modo como protege o silêncio. A parceria com Joana Santos funciona, mas é ele que dá densidade, gravidade, permanência. O problema é que o guião tenta conduzir o drama. Há um tema forte — o a...

On Falling (2024), Laura Carreira

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O filme de Laura Carreira, "On Falling", tem ambição e delicadeza, mas falha onde mais importa: na credibilidade do mundo que constrói. A protagonista, trabalhadora de um armazém na Escócia, cai numa espiral de pobreza e solidão depois de gastar 99 libras a reparar o telemóvel. O gesto é apresentado como o início da derrocada: sem comida, sem eletricidade, sem saída. O problema é que nada disso é verosímil. Numa Europa onde o custo da alimentação básica é baixo, e onde quem tem um contrato de trabalho legal dispõe de mínimos sociais, a ideia de alguém ficar sem comer por causa de um vidro de telemóvel parte de uma falsificação do real. Não é a miséria que o filme retrata, é o desamparo convertido em metáfora. Carreira não quer mostrar o realismo económico de uma vida precária, mas o desligamento existencial de quem já não sente pertença. No entanto, quando o filme se ancora num cenário reconhecível, um armazém de vendas online, a Escócia contemporânea, o espectador espera ...

Olhem Para Mim (1983), Anita Brookner

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No quarto capítulo de "Look at Me", quase desisti. Havia detalhe a mais, descrição a mais, e eu sentia que a história se perdia na observação do insignificante. Mas continuei e, sem perceber bem quando, comecei a querer voltar àquele mundo. Um mundo pequeno, contido, quase imóvel. Um terrário de emoções: tudo o que acontece lá dentro está delimitado e, por isso mesmo, seguro. Anita Brookner constrói o mundo como quem organiza uma casa demasiado silenciosa; cada gesto, cada frase estão no sítio certo; com um ar é espesso, de contenção. Frances Hinton, a narradora, é uma mulher que vive rodeada de outros e, ainda assim, à margem. Observa-os, descreve-os, tenta compreendê-los. É através dessa observação obsessiva que sobrevive à ausência da chamada vida vivida. O que antes me cansava — o detalhe — acabou por se tornar a própria razão da minha admiração. Brookner não descreve para enfeitar: descreve para existir. O olhar é o corpo da sua personagem. E é por isso que "Look at...

A House of Dynamite (2025), Kathryn Bigelow

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No início, parece mais um filme sobre crise nuclear. O presidente, o estado-maior, os protocolos, os ecrãs. Acreditamos que vai haver uma decisão. Que alguém vai fazer o que é certo. É isso que o cinema nos ensinou: há sempre uma solução. Mas A House of Dynamite vai desmontando essa crença, plano a plano, até restar só o vazio. A certa altura percebemos que nada do que fizerem importa. Que lançar ou não lançar é o mesmo. Que a defesa é uma ilusão moral. E é nesse momento que o filme deixa de ser ficção e passa a realidade sem disfarce. O mundo pode acabar com um míssil, e ninguém pode travá-lo. Não há tempo, não há sistema, não há escudo. A civilização inteira depende da sanidade de quem carrega num botão. O vice-presidente telefona à filha e não diz nada. Esse silêncio é o retrato da verdade: já não há o que dizer. E depois põe fim à lucidez. Porque compreende que a vida, a família, o país, tudo o que o definia, deixou de ter relevância. O futuro já não existe. Bigelow não most...

Task (2025), Brad Ingelsby

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Há séries que começam bem demais. O primeiro episódio de Task (2025) pertence a essa categoria: uma narrativa que se basta a si mesma, um conto trágico de 60 minutos que nos preenche por completo . Tudo está ali: o erro fatal, a culpa, o amor deformado, a fé perdida e a tentativa impossível de redenção. Robbie, o irmão de rosto angelical, é o centro emocional, um homem que acredita agir por justiça e acaba a destruir o que queria salvar. A sua expressão de pureza faz dele um anjo em queda, o espelho invertido do agente vivido por Mark Ruffalo, cuja contenção é penitência. Juntos, encenam o conflito eterno entre a lei e a compaixão, o cálculo e o impulso. Quando Robbie leva o miúdo para casa, na cena final, a série atinge o sublime trágico . A luz é fria, o silêncio pesa, e cada movimento parece carregado de um significado moral que excede as palavras. Nesse instante, o espectador percebe: tudo o que importa já foi dito. É o hamartia aristotélico, a falha que revela a alma. O probl...

Chuva Pesada (1966), Don Carpenter

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Há livros que parecem destinados a entrar no cânone e, no entanto, ficam à porta.  Chuva Pesada  é um desses casos, admirado, citado, mas raramente amado. A leitura é envolvente e contínua. Seguimos Jack como quem observa uma mente em movimento, tentando perceber o que o conduz, o que pensa, o que o impede de parar. Há uma coerência narrativa que prende e cria expectativa, como se algo decisivo estivesse sempre prestes a acontecer. Mas esse momento nunca chega. Carpenter constrói Jack não como uma personagem, mas como uma persona,  uma figura pensada para representar um tipo de homem. O problema é que, quando o leitor não se reconhece nesse tipo, a identificação quebra-se. Jack, órfão, ladrão, alcoólico, boxista, prisioneiro, acumula experiências, mas não ganha espessura. Acompanhamos o percurso, mas não sentimos proximidade. Quando Carpenter tenta transformá-lo num homem culto, interessado em Dostoiévski e na ópera, o texto perde verosimilhança. A reflexão filosófica s...