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Do Lado Dela (1949) de Alba de Céspedes

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Entrei em " Dalla Parte di Lei " (1949) com muita sede. Gosto muito de Alba de Céspedes e considero O Caderno Proibido  (1952) um dos meus livros preferidos de sempre. Por isso quis dar a este romance a mesma atenção. E dei. Mas acabei frustrado — não por falta de talento da autora, mas por um artifício narrativo que me parece, ao mesmo tempo, inteligente e problemático. Audiolivro narrado por Carlotta Brentan, a partir da tradução de  Jill Foulston Primeiro, uma correção importante: eu cheguei a pensar que este seria um romance de estreia, ainda imaturo. Afinal não é. Foi publicado apenas três anos antes de O Caderno Proibido . Portanto, a complexidade já estava lá. O que muda aqui não é falta de capacidade. É uma escolha. O livro chama-se “ Do Lado Dela ”, em italiano; em português, ficou " Confissão ” e, em inglês, " O Lado Dela da História " . Nenhum destes títulos é inocente. Eles preparam o leitor para aceitar, desde o início, que isto não é “a verdade”,...

Big Kiss, Bye-Bye. (2025). Claire-Louise Bennett

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Há livros que não se lêem: instalam-se. Big Kiss, Bye-Bye  (2025) pertence a esse território raro onde a literatura não avança por enredo nem por personagens no sentido clássico, mas por presença. O que Bennett constrói aqui não é uma história sobre uma relação; é antes a exposição contínua da consciência em ação, lúcida, por vezes cruel, mas viva, sempre a pensar-se a si própria enquanto vive. Aquilo que mais rapidamente nos captura é a voz. Uma voz de oralidade insistente e auto‑correctiva, que não relata acontecimentos depois de pensados, mas pensa enquanto fala e fala enquanto pensa. Não existe aqui a distância confortável entre a experiência e a linguagem. O texto nasce no mesmo plano em que a experiência se forma. As frases avançam com hesitações, desvios, e correções como método. Não se trata de fluxo de consciência, nem de fragmentação; trata‑se antes de uma consciência que se observa a si própria em tempo real. Um dos momentos mais intensos do livro — um longo monólogo int...

Hyperion (1989), com uma visão particular da IA

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"Hyperion" , (1989),  de Dan Simmons, é ficção científica que não procura ser coerente nem imediatamente compreensível. Em vez disso, propõe um universo de estranheza total: neologismos, planetas indecifráveis, entidades mecânicas que ultrapassam o simbólico, e uma política interplanetária que parece surgida de um sonho febril. Mas que funciona, e muito bem.  O primeiro impacto é o da densa arquitetura do desconhecido . Simmons cria um universo que nunca está inteiramente ao nosso alcance, e quer que assim seja. Percebemos que há coerência interna, há um plano, há um mundo firme por detrás das palavras. Mas esse mundo não se abre de imediato. Requer rendição, paciência, e a aceitação de que grande parte do fascínio está precisamente naquilo que não compreendemos . Baseado na estrutura dos " Canterbury Tales " , (1892) de Geoffrey Chaucer, o romance divide-se em seis narrativas contadas pelos peregrinos que se dirigem aos Túmulos do Tempo. É aqui que reside o maior ...

One Battle After Another (2025)

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Há filmes que vivem do excesso, do risco. E há outros que vivem da sensação de risco, sem nunca se aproximrem dele.  One Battle After Another é o segundo caso: um dispositivo de alta energia estética, muito barulho, muita pose, muita coreografia, e uma espantosa ausência de pensamento por baixo do verniz. Isto é um vazio profundo O filme é vendido como sátira política à América polarizada, mas o que encontramos é mais simples e muito mais pobre. Os grupos revolucionários que deveriam carregar uma experiência histórica, um legado de violência, de clandestinidade e de resistência real, aparecem retratados como crianças hiperativas a brincar aos códigos secretos. No extremo oposto, o “vilão” da extrema-direita é uma caricatura que não exige reflexão: basta uniforme, rigidez e frases ocas. No fim, ambos os lados são reduzidos à mesma idiotia simbólica. É o sonho da direita americana: antifa e supremacistas como palhaços equivalentes numa fantasia sem consequências. O mais perturbador...

La Maison vide (2025)

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Há escritores que nos surpreendem pela capacidade de inventar mundos; Laurent Mauvignier surpreende, antes de mais, pela forma como nos faz entrar dentro de consciências frágeis, quebradas, e pela coragem de nos manter ali, nesse interior ferido, o tempo suficiente para que reconheçamos algo de nosso. " La Maison vide" (2025) , que li agora depois de " Histoires de la nuit"  (2020) e de "Continuer" (2016) , confirma aquilo que já suspeitava: há, na obra de Mauvignier, uma arte particular de fazer literatura a partir da tensão interior, uma maneira de escavar a vida emocional que poucos conseguem com esta profundidade. O impacto veio em três etapas. Histoires de la nuit foi a primeira explosão: um romance que é, ao mesmo tempo, thriller , tragédia e estudo sobre o silêncio social. Continuer revelou outro lado, uma relação mãe-filho atravessada por ressentimento e ternura, escrita com vibração entre dois interiores que não se conseguem tocar. Mas "La...

À Chegada (2022)

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À Chegada ( Upon Entry ) (2023) é um filme mínimo, seco e devastador. Não pela intriga, quase inexistente, mas pela forma como opera no corpo do espectador. O argumento é simples: um casal que chega aos Estados Unidos para iniciar uma nova vida é retido no controlo de imigração e submetido a um interrogatório cada vez mais intrusivo. O que o filme disseca não é o sistema migratório; é o lugar secreto onde uma relação se pode partir. O que impressiona é a precisão quase cirúrgica das performances de Bruna Cusí e Alberto Ammann. O filme não vive do diálogo, mas daquilo que os corpos deles deixam escapar: o tremor na respiração dela, o maxilar crispado dele, a hesitação mínima que acende a suspeita, o olhar que já não encontra o do outro. A câmara mantém-nos presos a estas microfissuras. Há um realismo tão absoluto que, por momentos, desaparece a sensação de estarmos a ver ficção, o desconforto é físico. A tensão cresce não pelo risco externo, mas pela assimetria interna. Ela vem de um ...

Proust, roman familial (2023), Laure Murat

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Há uma aristocracia francesa que sobreviveu à Revolução sem nunca verdadeiramente cair. Não desapareceu: adaptou-se. Conservou títulos, rituais e, acima de tudo, uma forma de estar onde tudo se decide na superfície: nos modos, na contenção, na etiqueta, que funcionam como código moral. Laure Murat nasceu dentro desse mundo. É a partir dessa origem que escreve " Proust, roman familial" (2023). O livro não é um estudo académico sobre " A la Recherche du Temps Perdu " (1913-1927). É mais íntimo e mais incisivo: Murat lê Proust a partir da ferida de ter pertencido ao mesmo universo que ele descreveu e criticou. E, ao fazê-lo, mostra que a aristocracia francesa não é um resquício do passado, mas uma forma de vida ainda ativa, estrutural, discreta e eficaz. A ideia central é simples e terrível: na aristocracia, a vida não se vive, representa-se.  A imagem é a lei. A intimidade, o desejo, o sofrimento, a identidade, tudo deve permanecer dentro do quadro previamente defini...