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Destruição Social

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A série Little Bird é uma obra televisiva canadiana que nos mergulha no terror das consequências do " Sixties Scoop ", um período sombrio da história do Canadá. Durante as décadas de 1950 a 1980, milhares de crianças indígenas foram removidas à força das suas famílias e comunidades, sendo adoptadas por famílias não indígenas. Esta política visava a assimilação cultural, mas acabou por se transformar numa ação de profunda destruição social, criando traumas profundos na identidade de todos os envolvidos. A série é baseada em factos reais . A narrativa da série centra-se em Bezhig Little Bird, interpretada por Darla Contois, uma mulher indígena adoptada por uma família judaica em Montreal. Ao longo dos episódios, acompanhamos a sua autodescoberta e o modo como se tenta religar às suas raízes, enfrentando tudo e todos, num autêntico carrossel de emoções intensas decorrentes da adoção forçada. A série destaca-se pela abordagem psicológica de temas complexos, como identidade, pert...

Contra Camus

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"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido. A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança. A geografia e a emoção de "Meursau...

Orbital: para além da Terra

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Ler Orbital de Samantha Harvey é como atravessar uma fronteira do conhecido para o incógnito. Inicialmente, a fragmentação do texto convida à descoberta, abrindo uma janela para a realidade estranha e fascinante da vida em órbita. Harvey consegue transportar-nos para uma experiência quase sensorial, onde detalhes aparentemente banais — como a roupa suja, ou o ritmo alucinante de dezasseis amanheceres e entardeceres num único dia terrestre — adquirem uma nova dimensão, revelando-se profundamente significativos e existenciais. “But there are no new thoughts. They’re just old thoughts born into new moments – and in these moments is the thought: without that earth we are all finished. We couldn’t survive a second without its grace, we are sailors on a ship on a deep, dark unswimmable sea.” É importante destacar o excelente trabalho de pesquisa realizado pela autora sobre as condições de vida em órbita. Harvey oferece uma riqueza de informação nunca antes explorada, aprofundando com precis...

Coragem ou Narcisismo

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Constance Debré, em Love Me Tender  (2020) apresenta-se numa performance literária de voz direta, crua e nua. A sua escrita é um soco, sem filtros, quase um choque para o leitor. A autora despe-se de qualquer pudor, expondo as suas dores e a sua luta pela liberdade com uma franqueza que desperta tanto admiração quanto desconforto. A radicalidade da sua prosa está na recusa absoluta da máscara, num movimento contínuo de desnudamento, que parece desafiar o leitor a manter o olhar. Debré é uma mulher que parece querer viver sem concessões, explorando o limite da autenticidade. Há, inicialmente, uma fascinação: queremos conhecer alguém capaz de se expor assim, de confessar sem medo os seus desejos, as suas escolhas, os seus fracassos. Mas, à medida que avançamos, começamos a sentir o peso da repetição. E o livro, mesmo sendo curto, torna-se circular, uma espiral de dor e desejo que se repete sem variação. É como se Debré estivesse presa num ritual de autossabotagem, onde cada novo amo...

Entre o Corpo e o Absurdo — Warfare (2025)

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Em 2015, observei na análise a Ex Machina que a estética de Garland assenta não apenas no que nos dá a ver, mas sobretudo na forma como nos obriga a ver¹. Voltei a essa ideia em 2019, ao desmontar a «história de aniquilação» de Annihilation ², e em 2020, quando Devs expôs o determinismo algorítmico que sufoca o futuro³. Ao longo deste percurso, o realizador interroga os limites entre ontologia e violência. Com Warfare , revisita esse nó, mas abandona o laboratório e o aparato metafísico para filmar um corpo que treme no centro de uma casa em ruínas. Saí do filme a sentir‑me como quem se liberta de uma câmara hiperbárica: o som ainda a vibrar, a pele roçando os micro‑espasmos, a mente turva. Garland não quer que pensemos; quer que sintamos – que seja o corpo a lidar com o absurdo antes de o intelecto o tentar traduzir. A narrativa é depurada ao extremo. Não há grandes arcos morais nem discursos tácticos; apenas o acúmulo de estímulos que nos empurra cada vez mais fundo para dentro do ...

El Eternauta (1957-2025)

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Comecei a ver The Eternaut  na Netflix atraído pela imagem da máscara e pelo azul saturado que parecia definir o tom da série. Havia ali algo que me puxava. Ainda assim, quando percebi que era uma produção da América Latina, quase desisti. Tinha receio que fosse mais uma série no registo de telenovela, como tantas outras. Mas as críticas internacionais eram tão positivas, que decidi continuar. No primeiro episódio, a série lançou-me num território visual que me fez pensar em Metro , o videojogo russo . O ambiente de neve tóxica, as máscaras, os corpos caídos nas ruas — havia ali uma composição quase poética. A morte não era choque, era quase uma aceitação — corpos dispostos como quadros numa galeria. Mas à medida que os episódios avançavam, especialmente a partir do terceiro, o tom começou a mudar. A sensação de uma invasão alienígena, a ameaça que se insinua entre os sobreviventes, começaram a evocar War of the Worlds e Invasion of the Body Snatchers . A série parecia abra...

Dalva e o Cinema do Pós-Trauma

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Fui para Dalva à espera de comoção. Esperava que a história de uma menina abusada pelo pai me esmagasse, me revoltasse, me fizesse chorar. Mas o que encontrei foi algo muito mais raro: um filme que recusa a catarse e, com isso, devolve ao espectador o trabalho de pensar. Dalva , de Emmanuelle Nicot, não dramatiza o trauma, não exibe as feridas, não nos conduz pela mão. O que vemos é o depois imediato , o espaço vazio entre o fim de uma relação abusiva e a reconstrução de uma vida possível. E é nesse tempo narrativo pouco explorado que reside a sua força. A protagonista, Dalva, tem 12 anos. Mas comporta-se, move-se e veste-se como uma mulher adulta. Não há exagero, nem histeria. A violência está no descompasso. Os gestos, os olhares, o modo como cruza as pernas — tudo nela parece aprendido. O seu corpo é um palco. Mas o guião já não lhe serve. A realização é contida, rigorosa. A câmara observa sem invadir. A montagem corta antes da explicação. O guião é admirável pela sua contenção: ...