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Narrativas Streaming: 2024

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Nos últimos doze meses, explorei uma ampla variedade de narrativas oferecidas pelas plataformas de streaming, confirmando a riqueza e a diversidade da produção audiovisual seriada. O panorama tem vindo a afirmar-se ao lado, e por vezes mesmo acima do cinema, igualando muitas vezes aquilo que até agora só a literatura conseguia fazer, nomeadamente no desenvolvimento de personagens. Analisando a seleção tenho quase tudo no domínio do thriller focado em dois grandes géneros: policial e ficção-científica.  Selecionei as melhores, no domínio narrativo, identificando as plataformas de streaming onde vi cada uma. Em cada plataforma, estão por ordem de qualidade. FILMIN Prisoner (Dinamarca, 2023) ( IMDB ) Criador: Kim Fupz Aakeson Uma narrativa sombria que explora os limites da liberdade e da mente humana. Sem grandes artifícios, a série prende a atenção pela crueza entre os personagens. The Sixth Commandment (UK, 2023)( IMDB ) Criadora: Sarah Phelps Misteriosa, esta minissérie aborda um...

Dar significado

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“Mártir!” (2024) é um romance existencialista sobre um jovem escritor iraniano-americano apaixonado pela ideia de mártires, não as aberrações islâmicas, mas os mártires pacifistas do tipo Joana D’Arc, Bobby Sands ou o homem do tanque da Praça de Tiananmen. Cyrus perdeu a mãe numa catástrofe aérea, em 1988, que alguns ainda recordarão, o abate de um avião civil iraniano por um míssil americano lançado de um porta-aviações no Golfo, e que resultou em 290 mortes. A morte da sua mãe deveria significar algo mais para o mundo, acredita Cyrus, sendo esse o tema de fundo, o ato de significar. Kaveh Akbar nasceu no Irão em 1989, e tal como o anti-herói, emigrou para os EUA com apenas dois anos. Doutorou-se em Escrita Criativa, e é hoje uma personalidade reconhecida, tendo recebido bolsas de prestígio, nos EUA pela sua poesia. “Mártir!” é o seu primeiro romance e é uma obra erudita na forma, mas acessível nas ideias. Akbar apresenta um domínio fascinante do discurso. A característica principa...

Literatura de Viagem

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"Border: A Journey to the Edge of Europe" (2017), não funcionou comigo. A búlgara Kapka Kassabova fala-nos de um lugar onde se cruza a fronteira entre a Bulgária, a Grécia e a Turquia, ao lado de um maçiço montanhoso, designado Strandja, que dá para o Mar Morto, tudo qualificado como a antiga região da Trácia. Quis muito ler, pensando que encontraria aqui mais uma pequena jóia como "Free" de Lea Ypi , contudo, acabou sendo uma enorme desilusão. Percebi só depois de ter desistido porquê. "Border" pertence a um género literário de que não sou particularmente fã, a Literatura de Viagem. Não gostando muito de viajar, o meu problema com este tipo de literatura tem que ver com o facto de se centrar no Espaço-Tempo, o mundo que nos quer apresentar, deixando de fora os Personagens, as suas vidas, que é aquilo que realmente me interessa na literatura. Kapka Kassabova, é uma poeta que tudo faz para dourar exotismo do mundo que nos apresenta, mas que apesar de o faze...

Escrever através dos outros

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Não conhecia Philippe Lançon, cheguei a este seu livro através do acontecimento que lhe deu origem, o ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo, em 7 de janeiro 2015. Lançon, crítico literário, escrevia para o Charlie Hebdo, e para o Libération, onde tinha acabado de publicar a análise de “Submission” de Michel Houellebecq que seria posto à venda nesse mesmo dia. Lançon foi um dos poucos sobreviventes do ataque, apesar de ter sido atingido na cara e maxilar, tendo passado quase um ano no hospital, onde foi submetido a quase vinte operações para recuperar alguma das funcionalidades vitais — beber, comer e falar. Lançon escreve belissimamente. A forma do discurso é perfeita. Contudo, não faltam só competências narrativas, capazes de envolver o leitor, falta também mundo, nomeadamente matéria humana. Todo o livro é escrito como um conjunto de análises literárias. Análises de objetos e não de pessoas, de experiências humanas com sentires, vivências, alegrias, dores e aflições. F...

Comer o Buda (2020)

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Com muita pena, não funcionou comigo. Vinha com imensas expectativas, queria muito lê-lo, pois tinha adorado “Nothing to Envy” (2009) , focado na Coreia do Norte. A abordagem aqui seguida é muito próxima. Demick escolhe um conjunto de personagens da cidade de Ngaba , no Tibete, e segue os fios narrativos das suas vidas. Contudo, as histórias destes personagens acabam por falhar na explanação do real alcance dos efeitos da invasão e totalitarismo imposto pela China no Tibete.     A contextualização da invasão, nos anos 1950, apresenta um bom recorte do que aconteceu, colocando a nu a colonização forçada, realizada pela China em pleno século XX. Surpreende que tenha sido possível, contudo o livro de Demick caracteriza suficientemente o povo tibetano para compreendermos o fundo da questão. Ao fim de décadas a sonhar com pacifismo, aprendi que no nosso planeta não existe lugar para tal. Se um país quer ser independente, tem de lutar por isso. Mesmo o pacifismo de Gandhi não foi...

Um dos Nossos (2023)

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Tinha muitas expectativas quando peguei neste livro de Willa Cather. Adorei os seus “ The Professor's House ” e “ Minha Antónia ”. O registo aproxima-se, contudo estende-se além do sustentável pela narrativa, nomeadamente por ser quebrada em dois grandes momentos, a vida no interior dos EUA, e a partida para a Primeira Grande Guerra, por parte do personagem principal. Se na primeira parte a personagem parece querer evidencar algo particular de si, o modo como se sente desligado de tudo, a fazer recordar Stoner, contudo nada acabando por efetivamente desvelar-se, na segunda parte entramos num outro território, tão distinto a ponto de o próprio personagem servir apenas de veículo à narrativa, refugiando-se numa concha daquilo que foi apresentado na primeira parte. Compreendo o Pulitzer dado em 1923, cinco anos apenas após o fim da terrível guerra. Mas é um livro incapaz de sobreviver ao tempo, a falta do contexto experiencial duro dessa era afasta-nos, torna distante a leitura, o int...

Vidas Seguintes (2022)

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Abdulrazak Gurnah recebeu o  Nobel em 2021 , tendo este "Vidas Seguintes" saído no ano seguinte. Foi o único que li até agora do autor. Mas pelo que li sobre o mesmo, vem na linha dos seus livros anteriores. A escrita de Gurnah é, sem dúvida, um dos pontos altos. A prosa, é caracterizada por um lirismo discreto e preciso, capaz de nos hipnotizar. Impressiona o modo como evitando a ação, nos consegue prender pela mera descrição do que acontece. Nomeadamente, os personagens munidos de uma calma imensa, quase ausentes de emocionalidade, levam-nos pela mão, convencendo-nos a aceitar o trauma como uma inevitabilidade. Isto é tanto mais relevante por se focar nas questões da colonização de África pela Europa, que alegadamente aconteceu sem oposição. Como se Gurnah precisasse dessa encenação para dar conta da profundidade do choque produzido pela colonização. A narrativa é deliberadamente arrastada, fornecendo detalhes históricos e culturais, despidos da esperada emocionalidade trág...