Mensagens

Preparar a Próxima Vida

Imagem
A primeira constatação a fazer é relativa às competências de observação e descrição de Atticus Lish que parece dotado de memória fotográfica. Não falo daquelas descrições do século XIX, dos edifícios e das flores, mas de algo bem mais complexo, da vida em movimento. Lish não nos dá apenas a ver onde os seus personagens estão, dá-nos a ver o modo como se movem, como se comportam, como falam, assim como pensam. A verossimilidade das descrições é de tal ordem que ao fim de algumas páginas tive de ir à procura da história de vida do autor para confirmar que ele tinha mesmo vivido na China e que se tinha alistado nos US Marines. É daqui que vem toda a força de “Preparação para a Próxima Vida” (2014) que é o primeiro livro do autor, publicado nos seus 42 anos, mas também do foco nos invisíveis das sociedades desenvolvidas, aqueles que fazem o trabalho que ninguém quer e conseguem ser pagos abaixo do salário mínimo porque não têm papéis. Atticus Lish entrega-nos uma personagem principal, Zou

Cartas para o futuro

Imagem
“ Season: A Letter to the Future ” (2023) apresenta um mundo-jogo recriado a partir da mistura entre o jogo “ Journey ” (2012) o universo visual de Hayao Miyazaki para nos oferecer um universo-história muito particular, um fim-do-mundo acolhedor! No mundo do jogo, a cada nova estação quase tudo termina, quase tudo muda, perdendo-se muita da cultura criada. Para contrariar essa perda o personagem principal recebe como missão da sua mãe ir pelo mundo e registar o máximo possível para as gerações vindouras. Para o efeito, leva consigo um caderno no qual pode registar fotografias, desenhos e sons, viajando por meio de uma bicicleta.  “Season” oferece-nos 8 horas de relaxamento, obrigando-nos a reduzir a velocidade do dia-a-dia, a parar para olhar e apreciar o que existe à nossa volta. Não temos objetivos concretos, cabe-nos passear, ver o máximo de coisas e registá-las. Todo o mundo audiovisual assim como o fluxo interativa funciona no sentido de apaziaguamento, próximo de Journey, mas ain

Laços de Domenico Starnone

Imagem
Antes de avançar para a discussão da obra, quero enquadrar o contexto da sua relação com Elena Ferrante sobre quem existem muitas teorias a propósito da sua identidade. Uma dessas teorias refere Domenico Starnone como a pessoa por detrás do pseudónimo. Tendo agora lido ambos, não creio. Os mundos são muito próximos, mas o ponto de vista é muito distante, temos aqui claramente uma visão de um homem, enquanto em Ferrante temos a de uma mulher. A escrita em ambos é excecional, ainda assim Ferrante pontua acima pelo modo como consegue representar em texto o experienciar. Ajuda à confusão Starnone ser casado com Anita Raja, a tradutora que muitos também acreditam ser Elena Ferrante. Mas se tudo isto não passa de fait-divers, o que mais me interessa nesta proximidade é sem dúvida o modo como “Laços” (2014) pode ser visto como a continuação de “ Os Dias de Abandono ” (2002), aquele que é o meu livro preferido de Ferrante.  Capa da edição italiana que prefiro à da edição portuguesa que li da A

Um Quarto Só Meu

Imagem
Este livro de Woolf é fruto de uma palestra dada em 1928 na Universidade de Cambridge, nos colégios femininos da instituição, que a obrigou a refletir sobre a condição da mulher. Começando por atacar a discriminação da própria instituição na relação entre professores homens e professores mulheres, Woolf faz depois um périplo pela história da arte da escrita dando conta da diferença nos níveis de produção entre homens e mulheres. Se este livro foi um grito de alerta no seu tempo, e boa parte do que aqui se relata foi entretanto revertido, na verdade, Woolf toca numa questão ainda mais profunda: quem é que pode realmente produzir arte? Porque como diz Woolf, a mulher não precisa apenas de um quarto só seu, precisa também de dinheiro para se manter e poder dedicar-se à sua arte (Woolf recebeu uma herança de uma tia que lhe permitiu dedicar-se exclusivamente à escrita). Ora, o que temos no cânone da literatura não é feito apenas de um recorte de homens. É feito de um recorte de homens com

A Condição Humana, segundo David Benatar

Imagem
No final da introdução, de " The Human Predicament: A Candid Guide to Life's Biggest Questions " (2017), tive de fazer uma pausa, porque o meu estado de humor mudou, senti a vertigem da depressão a aproximar-se. Dei-lhe o benefício da dúvida, acabando por ler o resto, não porque o tema mudou, mas porque o discurso se alterou, focando-se mais na desconstrução de argumentos e dialética. David Benatar é reconhecido como filósofo do pessimismo pelas suas posições niilistas, nomeadamente antinatalistas. Não é nada de novo, sempre existiram apesar de com pouco sucesso, porque como diz Benatar, as pessoas preferem as ilusões das prateleiras da autoajuda. Na verdade, antes de Benatar já me tinha enamorado por Schopenhauer , mas Benatar é distinto, desde logo porque escreve noutro tempo, com acesso a muita mais ciência sobre as nossas condições biológicas e cósmicas. Ainda assim, padece do mesmo mal de um outro pessimista, Emil Cioran , a excessiva repetição, o martelar de razões

A Máquina Fantástica (2023)

Imagem
"What a Fantastic Machine" (2023) é um ensaio audiovisual sobre a evolução das imagens audiovisuais, desde a sua génese, com a primeira fotografia de Nicephore Niepce, em 1828, até ao mundo infinito criado pelas 45 mil milhões de câmaras usadas diariamente para registar, fabricar e partilhar a derradeira experiência audiovisual. O trabalho de Axel Danielson e Maximilien Van Aertryck é uma autêntica masterclass de 1h30, não só pela reflexão que nos obriga a fazer, como pelo formato adotado que segue a máxima estilística do audiovisual de hoje, a captação de atenção imediata, total e contínua. O ensaio faz mais perguntas do que as respostas que consegue dar, evidencia um conjunto de factos históricos relevantes, nomeadamente sobre os primeiros momentos de cada nova corrente, alimentando a nossa curiosidade pelo desejo de chegar a compreender o que se passa aqui, nomeadamente com o fascínio da espécie humana pelas imagens audiovisuais. As evidências apresentadas são muito claras

Os Quatro Reinos da Existência (2023)

Imagem
" The Four Realms of Existence: A New Theory of Being Human " (2023) não passa de um amontoado de ideias do autor, misturadas com ideias de outros autores, sobre as quais LeDoux foi refletindo enquanto estava preso em casa durante a pandemia COVID-19. Falta-lhe uma ideia, uma estrutura capaz de construir e entregar essa nova ideia, falta muita edição e reescrita. LeDoux limita-se a juntar tudo num novo envelope a que dá o nome de Quatro Reinos da Existência divididos entre Biológico, Neurobiológico, Cognitivo e Consciente. Não se percebe o que são esses reinos, nem porquê estes quarto e não apenas 3, nomeadamente na relação entre o cognitivo e o consciente, mas não só. Mais à frente resolve pegar no modelo sistema dual da cognição, definido por Daniel Kahneman, para o repropor como sistema trial, acrescentando-lhe os reinos Neurobiológico e Consciente ao cognitivo, deixando de fora o biológico!   Mas tudo isto não me chocaria, dado todo o trabalho prévio de LeDoux, o enorme