A Mentira da Simetria
Li "Kairos" depois de ter lido "Eu vou, tu vais, ele vai" (2015), da mesma autora, sobre o qual escrevi uma breve reflexão em 2024 no Narrativa X. Na altura, não me deslumbrei, mas reconheci alguma densidade no retrato do drama dos refugiados. Agora, com Kairos, impulsionado pela crítica internacional e pela atribuição do Booker, entrei com a expectativa de encontrar a obra maior de Jenny Erpenbeck. Encontrei, sim, o fim da minha relação com a autora.
A normalização do abuso
O problema de Kairos não está em retratar uma relação tóxica. Isso pode ser literariamente legítimo. O problema está em não mostrar, em nenhum momento, que há algo de errado naquela relação. Hans não é só mais velho — é autoritário, controlador, possessivo, e emocionalmente violento. E Katharina, muito mais nova, entra num processo de submissão que se vai intensificando sem que a narrativa crie qualquer distanciamento crítico.
Erpenbeck narra tudo como se fosse apenas uma história de amor difícil. Não há juízo, nem sugestão de que o que se passa ali é destrutivo. O livro trata o sofrimento de Katharina como parte do seu crescimento pessoal, quase como um rito de passagem. Mas não é. É um processo de anulação de si, que a autora descreve com beleza formal, mas sem mostrar qualquer consciência ética sobre o que está a relatar.
Esse apagamento do desequilíbrio e da violência emocional transforma Kairos num livro cúmplice do que mostra. A autora não toma posição. Limita-se a narrar, como se a história se sustentasse por si. Mas há momentos em que isso não chega. Quando se retrata uma relação marcada pelo controlo, pelo isolamento e pela manipulação, a ausência de posicionamento transforma-se em normalização. E isso é grave.
O fracasso do epílogo e a mentira da simetria
No final, quando Katharina lê os arquivos da STASI e descobre que Hans colaborou com o regime, a autora podia ter aproveitado para trazer um olhar crítico sobre tudo o que foi contado. Mas não. Escolhe fechar com uma frase que pretende soar profunda:
"If only I’d known then that I was your mirror image."
Esta frase é inaceitável. Porque não havia simetria nenhuma. Hans tinha o poder, a idade, o controlo, a experiência. Katharina era uma jovem sem defesa. A ideia de que eram espelhos um do outro apaga tudo o que os separava. Apaga o abuso. Apaga a violência emocional. E transforma o que lemos numa farsa: uma tentativa de passar por complexidade o que foi, na verdade, uma relação sem saída, marcada por desigualdade e humilhação.
O epílogo mistura os arquivos da STASI com as memórias da relação, mas não para denunciar. Apenas para sugerir que tudo é ambíguo, tudo é humano, tudo se compreende. Mas há coisas que não se relativizam. Há gestos que precisam de ser nomeados. E a literatura, se quiser ter algum peso, não pode refugiar-se sempre na ambivalência poética.
Kairos não tem coragem de enfrentar aquilo que criou. Recua. Envolve o abuso em metáforas. E convida o leitor a aceitar tudo como se fosse apenas mais uma história difícil de amor. Mas não é. É uma história sem ética, contada sem crítica, e encerrada com uma frase que trai quem leu com atenção.
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