Contra Camus

"Meursault, contre-enquête" (2013), de Kamel Daoud, é uma resposta emocional ao clássico do absurdismo, "O Estrangeiro", de Albert Camus. Camus narra ali a história de Meursault, um homem indiferente que comete um homicídio absurdo, Daoud por sua vez oferece-nos a perspetiva do irmão da vítima — Musa, o árabe que nunca teve nome. Haroun, o narrador de Daoud, ergue-se como uma voz revoltada, determinada a dar nome e história ao irmão esquecido.

A leitura de "Meursault, Contra-Investigação" provoca uma sensação de claustrofobia. A emoção da repetição emerge como um ciclo interminável. Haroun insiste, vezes sem conta, que o seu irmão foi apenas "o árabe", que o seu nome foi negado, que a sua identidade foi apagada. Cada vez que pronuncia o nome do irmão — Musa — é como se tentasse devolver-lhe a vida. Esta repetição não é apenas uma estratégia narrativa, mas um reflexo de um ressentimento que procura vingança.

A geografia e a emoção de "Meursault, Contra-Investigação" transportaram-me para um outro território, distante mas parecido culturalmente, que surge em "Abril Despedaçado" de Ismail Kadare. Ambos os livros exploram personagens que vivem presas a um passado que traça o seu destino. Em Daoud, é o sangue do irmão perdido; em Kadare, é a honra familiar, uma tradição de vingança que ninguém parece capaz de quebrar. No entanto, enquanto em Kadare o ciclo de vingança assume uma dimensão quase mitológica, em Daoud é uma revolta sufocante. Haroun procura a vingança na emulação do que aconteceu  ao irmão, mas tal como em Camus, não há significado a oferecer, o que acaba por esvaziar a catarse da vingança.

Contudo, podemos, e devemos, ler nesta vingança algo mais do que a vingança do irmão, porque não é  contra Camus que ele fala, é contra a França e contra o apagamento colonial. É um grito anticolonialista.

Daoud escreveu uma obra intensa, mas ainda excessivamente presa à obra de Camus. A repetição do ressentimento, com o constante nomear de Musa, cria um texto que se fragmenta na denuncia. Mas talvez aí acabe por residir o seu maior valor, ao tornar visível como o ressentimento devora o interior humano.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Depois do Substack e do Wordpress, de volta ao Blogger

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

Vidas Seguintes (2022)