Sentir antes de dizer

O livro "Sentience: The Invention of Consciousness" (2022) de Nicholas Humphrey propõe uma explicação funcional da consciência que a aproxima de uma estratégia evolutiva de sobrevivência. A sua tese central distingue entre dois tipos de consciência — a cognitiva e a fenomenológica —, sendo esta última a que dá cor e textura à experiência de estar vivo. Humphrey descreve a consciência não como uma janela para o mundo, mas como um palco interno onde o organismo sente o impacto de estar no mundo. Viver, para Humphrey, é assum mais do que existir, é sentir. 


Este ponto de partida, que aproxima a consciência da emoção, sugere uma base comum com autores como António Damásio (1994), para quem a consciência emerge do corpo e das emoções que regulam a sua homeostasia. No entanto, à medida que o livro avança, Humphrey hesita em assumir essa ligação plena. Quando se aproxima da animalidade ou do corpo como sede do sentir, recua para explicações adaptativas, evitando nomear a emoção. Essa ambiguidade revela-se particularmente nítida no caso dos seus estudos, ao longo de décadas, com macacos. 

Esta hesitação, porém, não é exclusiva de Humphrey. Ao longo dos últimos anos, várias propostas teóricas tentaram mapear a consciência através de modelos explicativos sofisticados, mas que partilham uma limitação comum: evitam enfrentar diretamente o enigma do sentir. Thomas Metzinger (2009), com o seu Ego Tunnel, descreve o self como uma construção virtual sem substância ontológica. Anil Seth (2021) propõe a consciência como uma “alucinação controlada”, gerada por previsões interoceptivas. Lisa Feldman Barrett (2017), embora centrada na emoção, acaba por reduzir o sentir à construção linguística e cultural, esbatendo a sua dimensão fenomenológica. Humphrey distingue-se destes autores ao colocar o “sentir” no centro da sua definição de consciência fenomenológica. No entanto, como tenho defendido (ver textos complementares abaixo), a sua proposta acaba por hesitar — especialmente quando se aproxima da animalidade — recuando para explicações adaptativas que o aproximam, ainda que indiretamente, da mesma linhagem funcionalista. Apesar do esforço em recuperar a experiência vivida como fundamento, a simulação sensorial que propõe não parece bastar para capturar plenamente a sensação de “ser”.


1. Sentem os animais?

Um dos episódios mais discutidos de Sentience envolve uma experiência com macacos-resos, confrontados com dois espaços iluminados, um a azul e outro a vermelho. Os animais tendem a permanecer mais tempo sob a luz azul. A interpretação mais imediata seria atribuir à cor azul um efeito emocional — prazer, calma ou atração. Mas Humphrey recusa essa leitura.
“We shouldn’t jump to the conclusion that they ‘like’ blue light better. They may simply feel safer when they see it.” (Humphrey, 2022, p. 150)
O autor propõe uma explicação contextual e evolutiva: dias de céu azul correspondem a estados ambientais seguros, com baixa atividade dos sistemas de alarme fisiológicos. Assim, a luz azul funcionaria como um sinal indireto de segurança, permitindo ao corpo manter-se num estado de repouso.
“On clear days the monkey’s own arousal systems may be relatively quiet. The colour blue may have come to stand for this more relaxed internal state.” (Humphrey, 2022, p. 151)
A explicação parece plausível — mas revela uma tensão central na proposta de Humphrey. Ao rejeitar a leitura afetiva da escolha dos macacos, o autor acaba por sugerir, ainda assim, um mecanismo de associação emocional: o corpo reconhece o azul como sinal de tranquilidade. O que está a descrever é, na prática, uma forma elementar de emoção — mesmo que não o diga nesses termos.
Humphrey evita sistematicamente a palavra “emoção”, preferindo termos como “estado interno” ou “nível de excitação”. Esta linguagem protetora parece querer preservar uma fronteira entre humanos e animais — mesmo quando o comportamento é análogo. Tal como no caso da masturbação, o sentir é validado apenas quando acompanhado de autorreflexão ou linguagem. Sem isso, é relegado a reflexo.
No final do livro, Humphrey admite que alguns animais — nomeadamente mamíferos — possam ter consciência fenomenológica. Mas fá-lo com reservas:
“I think some kinds of phenomenal consciousness may go quite a long way down, perhaps even to mammals. But I doubt it goes much further.” (Humphrey, 2022, p. 269)
Ou seja, concede a possibilidade de sentirem — mas apenas em fragmentos, numa versão inferior da nossa experiência. Esta posição revela um antropocentrismo estrutural: exige-se dos animais um modelo de consciência à imagem da humana para que se lhes reconheça o sentir. Mas se a fenomenologia começa no corpo, como o próprio Humphrey defende, porque não aceitá-la também onde o corpo reage da mesma forma?

2. O prazer do onanismo

Um dos momentos mais provocadores de Sentience surge quando Nicholas Humphrey afirma que o orgasmo solitário pode gerar uma forma mais pura de consciência fenomenológica do que o sexo partilhado. A ideia é que, ao eliminar a complexidade da relação com o outro — os ruídos da comunicação, as exigências da interação —, a masturbação permite um foco mais intenso sobre o self sentiente. O corpo, nesse cenário, não serve como meio de ligação, mas como espelho de si próprio.
“Orgasm, for humans, brings the phenomenal self sharply into focus. And, though the experience revolves around bodily sensations, it can have a sublime unbodied quality — just as in those dreams of flying, but even more so.” (Humphrey, 2022, p. 248)
Esta proposta levanta um paradoxo central na arquitetura da sua teoria. Se a consciência é uma estratégia evolutiva para intensificar o valor da vida, como justificar que o seu auge se manifeste num gesto isolado, sem laço afetivo ou função reprodutiva? Humphrey parece deslocar a função adaptativa da consciência para uma dimensão estética do prazer — o que fragiliza a coerência do seu modelo.
Mas o maior paradoxo está na forma assimétrica como trata o mesmo comportamento noutras espécies. Humphrey reconhece que a masturbação é comum em muitos animais — mamíferos e aves incluídos — mas recusa atribuir-lhe qualquer valor fenomenológico:
“We shouldn’t be surprised if there are insentient animals that do it [masturbate] as a reflex when the opportunity presents itself. Indeed, masturbation is widespread among mammals and even birds. But how far is it ever really enjoyed?” (Humphrey, 2022, p. 248)
Ou seja, o comportamento é aceite como factual, mas o prazer — e, por extensão, a consciência — é-lhes negado. Enquanto no humano a masturbação é elevada a paradigma de interioridade consciente, nos outros animais é descartada como reflexo mecânico. Esta dualidade revela um viés antropocêntrico difícil de justificar numa proposta que pretende ser naturalista. Se a consciência se manifesta na intensidade da experiência, ela não pode depender apenas da linguagem ou da auto-observação — sobretudo quando o corpo faz o mesmo.

3. Sentir antes de dizer

Uma das teses mais influentes da psicologia contemporânea defende que as emoções não são universais nem inatas — mas sim construídas cultural e linguisticamente. Lisa Feldman Barrett, com a sua teoria da emotion construction, sustenta que o que sentimos como “emoção” resulta de conceitos aprendidos, aplicados pelo cérebro para dar sentido a estados internos ambíguos. Em vez de raiva, medo ou tristeza como entidades naturais, teríamos categorias culturais moldadas pela linguagem e pelo contexto.
“Your brain constructs instances of emotion by combining interoception with concepts from your past experience.” (Barrett, 2017: 62)
O coração da sua proposta reside na interocepção — a leitura que o cérebro faz do estado interno do corpo. Essa leitura, por si só, não é emocional: só se torna emoção quando é categorizada. Barrett afirma que, sem conceitos, não há emoções.
“If you didn’t have concepts, your brain would be experientially blind.” (Barrett, 2017: 52)
Esta posição conduz a uma implicação radical: animais não humanos e bebés pequenos, por não possuírem linguagem e conceitos emocionais, não sentem emoções no sentido pleno do termo. Podem ter sensações, excitação fisiológica, dor — mas não “tristeza” ou “alegria”. O sentir, na proposta de Barrett, é um produto da linguagem.

Esta posição conduz a uma implicação radical: animais não humanos e bebés pequenos, por não possuírem linguagem e conceitos emocionais, não sentem emoções no sentido pleno do termo. Podem ter sensações, excitação fisiológica, dor — mas não “tristeza” ou “alegria”. O sentir, na proposta de Barrett, é um produto da linguagem. No entanto, esta hipótese é contrariada por estudos sobre affect labeling, que mostram que a nomeação das emoções pode modulá-las, mas não é necessária para que sejam experienciadas (Torre & Lieberman, 2018). Ou seja, a linguagem afeta a regulação emocional, mas não a sua génese.

Esta visão, embora sofisticada, colide com uma vasta tradição evolutiva iniciada por Darwin (1872) e continuada por autores como António Damásio (1994), que veem nas emoções sistemas automáticos de regulação da vida, formados por seleção natural. A emoção, neste modelo, antecede a linguagem. Serve a homeostasia. E só depois é apropriada pela cultura.

Barrett procura superar o essencialismo emocional (a ideia de que existe uma lista universal de emoções), mas ao fazê-lo acaba por descartar completamente a dimensão biológica partilhada com outros animais. Recusa os estudos de Ekman sobre expressões faciais universais, ignora os paralelos neurofisiológicos entre espécies, e concentra-se na plasticidade conceitual.

Humphrey, mesmo mantendo o seu antropocentrismo, não chega tão longe. A sua proposta de consciência fenomenológica pode aplicar-se a estados não verbalizados, desde que vividos com intensidade. A luz azul, o orgasmo solitário ou a dor da queimadura — todos são sentidos antes de serem nomeados. A consciência não nasce da linguagem, mas do corpo que sente.

É aqui que a proposta de Barrett falha. Ao exigir linguagem como pré-condição do sentir, transforma o corpo em epifenómeno. E, ao fazê-lo, retira do campo das emoções todos os seres sem linguagem — um corte radical com a continuidade evolutiva da vida sensível.

Esta linha de pensamento, que coloca o corpo antes da linguagem, tem raízes antigas na psicologia. William James, já no final do século XIX, propôs que:
"We do not run because we are afraid, but we are afraid because we run. We do not cry because we are sad, but we are sad because we cry. We do not strike because we are angry, but we are angry because we strike." (James, 1884). 
Ou seja, a emoção não nasce de uma avaliação cognitiva, mas de uma mudança corporal sentida. James antecipou o que hoje Damásio reformula como a leitura neural dos estados somáticos. Esta perspetiva resiste à inversão proposta por Barrett, mantendo a primazia do corpo no nascimento do sentir.

O caso da “saudade” é exemplar. Milhões de pessoas sentem-na antes de saber o que significa a palavra. O termo vem depois, como um eco que tenta capturar o vivido. A saudade não surge da leitura de um dicionário, mas da ausência de um rosto, de um gesto, de uma presença.

4. Afeto, Emoção, Consciência

Há uma convergência curiosa entre Humphrey e Barrett que merece atenção: apesar das suas diferenças teóricas, ambos evitam sistematicamente a palavra “emoção”. Optam antes por expressões como “estado corporal”, “afeto” ou “consciência fenomenológica”. Esta escolha não parece derivar de uma inovação conceptual, mas sim de uma tentativa de escapar às implicações filosóficas e históricas do termo — demasiado carregado por dicotomias clássicas como razão versus paixão, logos versus pathos.
Humphrey, ao falar de sensações intensas que conferem valor à vida — como o orgasmo, a dor ou a contemplação estética — descreve algo que se aproxima do que tradicionalmente chamamos de emoção. Mas evita nomeá-lo como tal, talvez para preservar uma ideia de consciência mais elevada, separada do sentir “animal”. Como afirma:
“Phenomenal consciousness gives rise to the ‘nameless something’ that makes life feel worthwhile.” (Humphrey, 2022: 208)
Já Barrett recusa o termo por uma razão diferente: ao rejeitar a ideia de emoções universais, prefere dissolver o conceito em “afetos básicos” e “construções emocionais” que variam culturalmente. Essa recodificação permite-lhe afirmar:
“There is no single, consistent fingerprint for even a single emotion.” (Barrett, 2017: 71)
A consequência prática destas evasões é obscurecer aquilo que está no centro da questão: como descrever o que se sente antes de se saber nomear? A retórica da substituição — “afeto”, “estado interno”, “experiência somática” — parece menos preocupada com precisão conceptual do que com uma estratégia para contornar o corpo como origem do sentir.

É precisamente aqui que a proposta de António Damásio recupera a continuidade evolutiva que Barrett e Humphrey silenciam. Para Damásio, as emoções são padrões automáticos de resposta corporal, moldados pela seleção natural, cuja função é preservar a vida — ou seja, regular a homeostasia.
“Emotions are complex, largely automated programs of actions concocted by evolution.” (Damasio, 1994: 131)
O que chamamos “sentimento” surge depois: é o momento em que o organismo toma consciência desses padrões corporais — quando o cérebro lê e interpreta os sinais do corpo. Em termos simples: emoção é corpo; sentimento é consciência do corpo. Não são sinónimos, mas momentos distintos do mesmo processo.

Barrett, ao inverter esta ordem e colocar os conceitos antes do sentir, tenta subverter esta arquitetura natural. E ao fazê-lo, perde o elo com as espécies que não possuem linguagem, mas sentem — um corte com Darwin, com Damásio e com a fenomenologia básica da vida animal.

O que está em jogo não é uma simples disputa lexical, mas o reconhecimento de que a emoção é pré-conceitual, encarnada, anterior ao discurso. A novidade não está nos nomes alternativos, mas na coragem de aceitar que sentir é um acontecimento do corpo — e que qualquer teoria sobre o self, o afeto ou a consciência que ignore esse ponto está, desde o início, incompleta.

Conclusão

Ao longo deste ensaio, percorremos o arco que vai da biologia à filosofia da mente, examinando como se pensa hoje o sentir. Começámos com Humphrey e a sua tese original sobre a consciência como invenção adaptativa, passando pela sua recusa em reconhecer emoção nos animais e pela forma como contorna o prazer como marcador de existência. Em seguida, confrontámos a proposta construtivista de Lisa Feldman Barrett, que desloca as emoções da biologia para a linguagem, subtraindo-lhes o estatuto de universais.
Ambos, ainda que por caminhos distintos, cometem o mesmo gesto: afastam o corpo do centro da experiência emocional. Humphrey, ao sobrevalorizar a consciência reflexiva; Barrett, ao atribuir a emoção ao conceito e à cultura. Contra ambos, recuperámos a proposta de António Damásio, que nos lembra que a emoção não nasce com a linguagem, mas com a vida — com a necessidade de manter a homeostasia num organismo vivo e vulnerável.

A emoção, nesse sentido, não é desvio racional: é o próprio sistema operativo da sobrevivência animal. Um sistema que se foi refinando ao longo da evolução, com sensores corporais cada vez mais sofisticados, capazes de antecipar riscos, avaliar contextos e propor respostas adaptativas. É isso que Darwin já intuía ao observar expressões faciais em homens e animais: um mesmo gesto, um mesmo código, uma mesma origem: “The same state of mind is expressed throughout the world with remarkable uniformity.” (Darwin, 1872: 17).

Textos complementares


Referências

  • Barrett, L. F. (2017). How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain. Houghton Mifflin Harcourt.
  • Darwin, C. (1872). The Expression of the Emotions in Man and Animals. John Murray.
  • Damásio, A. (1994). Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain. Putnam.
  • Damásio, A. (1999). The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness. Harcourt.
  • Ekman, P. (1992). An Argument for Basic Emotions. Cognition & Emotion, 6(3–4), 169–200.
  • Humphrey, N. (2022). Sentience: The Invention of Consciousness. Oxford University Press.
  • James, W. (1884). What is an Emotion? Mind, 9(34), 188–205.
  • Metzinger, T. (2009). The Ego Tunnel: The Science of the Mind and the Myth of the Self. Basic Books.
  • Seth, A. K. (2021). Being You: A New Science of Consciousness. Faber & Faber.
  • Torre, J. B., & Lieberman, M. D. (2018). Putting Feelings Into Words: Affect Labeling as Implicit Emotion Regulation. Emotion Review*, 10(2), https://doi.org/10.1177/1754073917742706


Nota: Este texto foi desenvolvido a partir de uma interação com um modelo de linguagem avançado (IA), usado como interlocutor crítico ao longo do processo reflexivo. A estrutura e redação foram apoiadas pela IA, sob direção e revisão final do autor. A imagem de referência do post foi também criada por IA.

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