A Guardiã (2024)
Quando uma história nos engana para depois nos obrigar a reconstruir tudo o que sabíamos, percebemos que nem sempre se trata apenas de uma estratégia para nos prender. Pode ser, também, uma poderosa lição sobre a forma como escolhemos lembrar ou esquecer. A Guardiã (2024) de Yael van der Wouden constrói toda a sua primeira parte como uma ilusão, uma máscara narrativa que, apenas a meio do livro, é desfeita, revelando a verdadeira história. No início, essa manipulação irrita porque parece não passar de um truque narrativo. Mas, no final, reconheço que essa manobra revela uma inteligência imensa: a autora coloca-nos no lugar do holandês comum, que vive na sua bolha de inocência confortável, acreditando que tudo se passa como deve passar.
Ao desvelar a trama a meio, a autora faz-nos viver a mesma desestabilização que as sociedades, e cada um de nós, enfrentam quando confrontadas com a memória histórica. Esse momento não é apenas uma reviravolta narrativa, é um convite a reconstruir tudo aquilo em que confiávamos. Essa reconstrução não é apenas intelectual, é também emocional, ética e política.
A meio da leitura, senti uma forte aproximação com La Carte Postale (2021) de Anne Berest, que me marcou profundamente pela forma como expõe a cumplicidade social na França de Vichy. Essa cumplicidade, em A Guardiã de Yael van der Wouden, transita para a Holanda, um país que conheço menos, mas cuja atitude de rectidão e assertividade tantas vezes esconde, tal como em outros contextos, uma ausência de empatia.
Neste livro, é impossível não perceber a provocação da autora: desmonta a narrativa oficial dos holandeses como vítimas e obriga-nos a encarar as cumplicidades, os silêncios e as injustiças. Muitos beneficiaram da deportação dos judeus, ocuparam casas e bens e, quando os poucos sobreviventes regressaram, encontraram frieza, indiferença e até hostilidade.
Os personagens, no início, parecem frágeis, banais e distantes. Não nos dizem nada. Mas é precisamente nesta banalidade que reside a força do livro, mostrando como a História grande se faz de pequenas vidas que preferem não ver.
Persisti na leitura por causa da nomeação para a Short List do Booker. Algo me dizia que tinha de haver ali mais. E havia. Descobri que A Guardiã não é apenas sobre um romance ou uma traição: é sobre a forma como a História, com H grande, foi contada, assimilada e, por vezes, distorcida.
O grande mérito da autora é mostrar-nos que a manipulação narrativa pode ser mais do que um truque. É um espelho implacável da nossa própria recusa em saber. Obriga-nos a sair da bolha confortável da nossa história e a enfrentar a realidade, política, emocional e ética, de quem fomos e de quem ainda somos.
Ler A Guardiã de Yael não é difícil. Apesar do tema, a leitura flui com naturalidade, mantendo-nos num registo quase contemplativo, como se estivéssemos a assistir aos acontecimentos de fora, sentindo-os mas também racionalizando cada gesto, cada silêncio. O livro não nos massacra, não nos obriga a viver o trauma em primeira pessoa. Convida-nos, antes, a observar, a reflectir sobre as camadas da História que, por vezes, preferimos não ver.
Comentários
Enviar um comentário