A Distinção, de Bourdieu a Rivière

Tiphaine Rivière já nos tinha dado o belíssimo “Carnets de These” (2015), sobre a sua experiência falhada de terminar um doutoramento, no qual realiza toda uma pedagogia sobre as dificuldades e misticismos do acesso à carreira académica. Nesta sua nova banda-desenhada, “La Distinction” (2023), manteve a postura didática assim como a análise social, mas desta vez assente numa obra da sociologia centrada nos juízos do gosto social. O resultado é uma obra facilitadora do trabalho seminal de Pierre Bourdieu, “La Distinction: Critique sociale du jugement” (1979), capaz de conectar os conceitos definidos nos anos 1970 com as gerações do século XXI. Para isso, Rivière criou um cenário no qual temos um professor de um liceu francês a debater com os seus alunos, provenientes das mais diversas origens sociais, o gosto artístico que suporta a diferença entre classes, oferecendo espaço aos alunos para contraporem, via a sua própria experiência, cada conceito de Bourdieu. O livro responde totalmente à missão, sendo capaz de retirar o leitor do seu lugar de conforto para o obrigar a todo um trabalho de autoanálise, conduzindo-o depois a uma contracrítica de suporte à elegibilidade do seu lugar social, suportado por ideias como a personalidade, os genes ou o mérito.




O trabalho de Bourdieu é por demais conhecido, nomeadamente daqueles que estudam ciências sociais, dispensando apresentações ou louvores. No entanto, e porque andava há alguns anos para ler o livro, que é um calhamaço com mais 800 páginas, acabei agora por meio de Tiphaine Rivière, por realizar uma maior aproximação e aprofundamento aos conceitos definidos por Bourdieu — gosto de necessidade, gosto de liberdade, o Habitus — na sua relação com conceitos sociológicos como o capital económico, o capital cultural e o capital social. Assim, se na generalidade a sua proposta além de consistente e suportada é significante, não deixa de apresentar uma imensidão de áreas a descoberto que acabam funcionando como razões da crítica ao trabalho. Do meu lado, mais do que tentar aceder aos erros da interpretação sociológica criada por Bourdieu, procurei compreender a relação desta visão com a de outras áreas científicas, nomeadamente a filosófica, evolucionária, mas também um conjunto de conceitos em que tenho vindo a trabalhar sobre o impacto da cultura no ser humano.

Assim, na relação direta com as filosofias estéticas, Bourdieu coloca em cheque duas ideias centrais de Kant, o belo universal e o desinteresse prático da arte, contrapondo o belo como formado a partir das experiências sociais de cada um, atribuindo-lhe depois uma valoração social, traduzida em capital social pelas competências de gosto. Deste modo, Bourdieu elabora o conceito de “gosto de necessidade” que define o modo como as preferências culturais de cada um são moldadas pelas condições materiais da existência, ou seja, pelas restrições financeiras, tradições familiares e outras variáveis sociais.

Por outro lado, quando colocado ao lado da teorização evolucionária (Dutton, 2009), podemos dizer que existe uma aproximação entre ambas, já que ao suportar-se a evolução estética na evolução da espécie humana, estamos a defender que o gosto é determinado pelo comportamento humano. Isto é mais evidente quando se relaciona o gosto com a seleção sexual, oferecendo à arte um valor prático que vai além do social para assumir garante de sobrevivência.

Por fim, deixo a minha visão crítica do trabalho de Bourdieu. Assumindo que a base do seu trabalho está correta e traça um quadro definidor das relações sociais que suportam o gosto artístico, não consigo deixar de ver este quadro como tremendamente estático, e por isso de algum modo inconsequente. Ou seja, o indivíduo nasce num caldo cultural que imprime as tendências basilares do gosto no mesmo, mas isso não impede o indivíduo de se transformar, nomeadamente pelo contacto com os restantes atores culturais. Desde logo, a escola, que ao contrário do que Bourdieu assume, não impacta apenas por via de matérias escolares, algo que é bem explorado neste livro por Rivière, ao demonstrar como os alunos começam por chocar com as suas bagagens culturais tão distintas, mas à medida que se vão envolvendo vão cruzando e apreendendo novas realidades e gostos, fruto desses choques. Aliás, nos dias de hoje tendo a dizer aos meus alunos que eles têm mais a aprender, nos anos que passam pela universidade, com a interação com os colegas do que comigo.

Mas existe ainda um outro ponto que me tem sido mais caro nos últimos tempos e que tem que ver com a evolução do gosto individual. Naturalmente somos animais sociais, e dependemos da constante interação para nos transformar, mas não só. O consumo continuado de determinada forma de expressão artística — música, cinema, literatura, videojogos, banda-desenhada, etc. — refina per se o nosso gosto. Vivemos um tempo de enorme abundância na produção cultural, assim como de tempo de lazer, por isso o consumo eleva-se a pontos de saturação. À medida que vamos consumindo os livros ou filmes de que mais gostamos vamos saturando as nossas preferências pela simples necessidade do novo e da surpresa para garantir a nossa curiosidade. Assim, o gosto, inicialmente encerrado nas influências sociais, passa a definir-se pelo crescimento do conhecimento do próprio consumidor sobre a matéria que consome. Os romances simples que faziam inicialmente as suas delícias deixam de ser suficientes para manter a atenção, exigindo que este se mova para romances cada vez mais elaborados e exigentes. Deste modo, podemos dizer que o gosto se define particularmente pelo grau de relação que cada um constrói com cada forma de arte. 


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