O sofrimento na literatura

"Ceci n’est pas un fait divers" (2023) de Philippe Besson é uma obra que aborda o feminicídio através da escalpelização psicológica dos efeitos emocionais deste evento traumático numa família. O ponto de vista é distinto, já que apresentado pelos olhos do irmão mais velho (19), que fica para cuidar da irmã mais nova (13). Contudo, se a intensidade emocional da experiência é elevada, o livro levanta-me questões sobre os propósitos da literatura.


Um dos pontos fortes do livro é a gestão de informação e de emoção por Besson, que demonstra habilidade no controlo do suspense e na criação de dor no leitor. Os embates emocionais são particularmente intensos no início e no final da narrativa, levando o leitor através de uma montanha-russa psicológica. Este mergulho profundo no sofrimento das personagens permite um acesso privilegiado ao trauma do acontecimento.

Por outro lado, revela um dos principais problemas da obra pelo modo como se centra quase exclusivamente no evento ocorrido, tratando-o sem particularidade, oferecendo um conjunto de efeitos e reações totalmente prevísiveis. Ao usar um caso igual a tantos outros, Besson parece pretender realizar uma crítica abstracta do colectivo, como o próprio título indica, contudo, esse enfoque acaba limitando o caso apresentado, já que se queda sem oferecer qualquer ideia nova. Desta forma, a obra não contribui para qualquer consciencialização ou para o debate sobre o feminicídio. A narrativa, ao esfregar a angústia na cara do leitor, provoca empatia forte mas momentânea, não oferecendo qualquer caminho transformador falhando a provocação reflexiva.

No final, o feminicídio não é apenas mais um fait divers, contudo este livro de Besson pouco mais faz do que ficcionar e intensificar esse mesmo  fait divers. 

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