A Parábola de Octavia E. Butler
Octavia E. Butler foi uma das vozes mais influentes da ficção especulativa americana do final do século XX, tendo antecipado em Parable of the Sower (1993) vários temas que viriam a marcar a literatura e a cultura popular do início do século XXI. Este romance insere-se na tradição das atuas distopias, narrativas apocalípticas, como The Road (2006) de Cormac McCarthy, The Walking Dead (2003) de Robert Kirkman, e mais recentemente, The Last of Us (2013). Embora não inclua elementos sobrenaturais como zombies, a figura dos pyros, viciados numa droga que os leva a incendiar tudo o que encontram, cumpre uma função semelhante, representando o colapso social e a ameaça permanente à sobrevivência. O livro de Butler antecipa assim uma tendência narrativa do século XXI que se foca no declínio da sociedade e nas lutas individuais pela sobrevivência em mundos em ruínas.
Um dos temas centrais de Parable of the Sower é a tensão entre o desejo humano de estabilidade e a inevitabilidade da mudança. Butler capta muito bem o paradoxo fundamental da existência humana: ansiamos pelo conforto do familiar, mas reconhecemos a necessidade do novo e do diferente. Esta contradição é representada de forma explícita na filosofia de Earthseed, criada pela protagonista Lauren Olamina, que assenta no princípio de que "Deus é Mudança". Apesar de Lauren ter sido educada numa comunidade cristã conservadora, esta visão ecoa o princípio budista basilar da impermanência, que defende que tudo está em fluxo constante e que a resistência à mudança é a raiz do sofrimento.
“All that you touch You Change. All that you Change Changes you. The only lasting truth Is Change.”
Tenho encontrado este príncipio nas mais diversas áreas, sendo a mais recente a Física, nomeadamente nas ideias de Carlo Rovelli sobre a natureza do tempo. Rovelli (2017) argumenta que o tempo não é absoluto, mas antes um processo dinâmico de transformação contínua. Para ele, a realidade não é composta por objetos fixos, mas por eventos interligados em constante mutação, num regresso contínuo ao caos. Esta visão aproxima-se da filosofia de Earthseed, que rejeita qualquer forma de permanência e sublinha a adaptação como a única via para a sobrevivência e a evolução.
No entanto, à medida que o livro avança, começa a emergir o incómodo: apesar de Lauren pregar a adaptação contínua, Earthseed começa a parecer-se com uma religião, com direito a textos sagrados e uma líder carismática. Esta contradição reflete-se na forma como os seguidores de Lauren aceitam Earthseed como uma verdade absoluta, em vez de um princípio fluido e mutável. Butler percebe isso mesmo e, en passant, aborda a questão, percebendo que qualquer sistema de crenças, por mais flexível que seja na sua origem, está sujeito à institucionalização e a uma possível rigidez dogmática. Lauren não impõe a crença a ninguém, mas a dinâmica de liderança carismática e a devoção começam rapidamente a apresentar traços de um culto.
“The child in each of us
Knows paradise.
Paradise is home.
Home as it was
Or home as it should have been.Paradise is one's own place,
One's own people,
One's own world,
Knowing and known,
Perhaps even
Loving and loved.Yet every child
Is cast from paradise-
Into growth and new community,
Into vast, ongoing
Change.”
Se considerarmos as religiões mais recentes, é possível identificar padrões muito semelhantes em Earthseed. Muitas religiões emergem como respostas a crises, oferecendo novas estruturas de significado. Earthseed nasce num cenário de colapso civilizacional e apela a indivíduos em desespero, prometendo um propósito e até um destino – a colonização do espaço — algo que Butler nunca desenvolve completamente, mas que ecoa na perfeição a eterna Terra Prometida, afastando-se assim do budismo, para retornar ao modelo do cristianismo.
Ainda assim, Earthseed rejeita o Deus tradicional, substituindo-o por um conceito dinâmico de divindade. Esta abordagem insere-se numa tradição de pensamento espiritual que se afasta das religiões dogmáticas, abraçando uma visão mais fluida e cósmica da existência. Aqui, voltamos a ver o paralelo com a postura do Dalai Lama em relação à ciência. O Dalai Lama, de forma surpreendente tem afirmado que, sempre que a ciência demonstra que estamos errados, é nosso dever e das nossas crenças adaptarem-se. Tal como Lauren propõe em Earthseed, esta visão implica uma espiritualidade que se reformula constantemente à luz do conhecimento e das circunstâncias. Claro que isto pode ser fácil para alguém com o estofo mental do Dalai Lama, mas para quem busca nestas abordagens um refúgio estável, gera uma tensão complexa de gerir entre a teoria e a prática.
Outro aspeto intrigante de Parable of the Sower é o conceito de hiperempatia, uma condição neurológica que leva Lauren a sentir fisicamente a dor dos outros. Esta característica poderia ter sido um elemento central na narrativa, mas acaba também por ser explorada de forma limitada. A hiperempatia reforça a vulnerabilidade da protagonista num mundo brutal, tornando-a simultaneamente mais compassiva e mais suscetível ao sofrimento. No entanto, Butler não aprofunda completamente as implicações filosóficas e sociais desta condição. Eu esperava ver uma aproximação, ou sustentação de Earthseed na hiperempatia de Lauren, mas isso nunca acontece. Por outro lado, existe uma contradição inerente entre ambas. Até que ponto é possível conciliar um ideal de mudança constante com a necessidade humana de empatia e conexão emocional?
Por fim, Parable of the Sower recordou-me Station Eleven (2014) de St. John Mandel. Senti como se estivesse a ler uma primeira parte da obra de Mandel. Enquanto Butler explora a luta pela sobrevivência num mundo devastado e a luta por uma nova ordem, Station Eleven apresenta uma visão de um futuro mais tranquilo, onde comunidades se reorganizam com uma nova perspectiva sobre a vida e com o surgimento de novas crenças e religiões. Essa transição entre o caos e a serenidade parece refletir a inspiração que Mandel tirou de Butler, apresentando uma evolução da paisagem distópica em que as formas de resistência e adaptação se dão de maneira mais pacífica. A obra de Mandel, parece assim ser um 'capítulo seguinte', onde, após o tempo de destruição, surge a possibilidade de renascimento, algo que Butler aqui antecipa.
“Civilization is to groups what intelligence is to individuals. It is a means of combining the intelligence of many to achieve ongoing group adaptation. Civilization, like intelligence, may serve well, serve adequately, or fail to serve its adaptive function. When civilization fails to serve, it must disintegrate unless it is acted upon by unifying internal or external forces.”
A relevância de Parable of the Sower vai além de todas estas questões. A escrita não está ao nível de Cormac, ligeiramente abaixo de Mandel. Mas são as ideias e o mundo criado por Buttler interessam. O livro antecipa debates contemporâneos sobre o colapso climático, mas dá conta, como não podia deixar de ser em Buttle, da desigualdade social, racial assim como dos efeitos das migrações forçadas, tornando-se numa leitura imensamente atual.
Última curiosidade, a realidade retratada no livro passa-se entre 2024 e 2027.
Referências
- Butler, Octavia E. Parable of the Sower. New York: Four Walls Eight Windows, 1993.
- McCarthy, Cormac. The Road. New York: Alfred A. Knopf, 2006.
- Kirkman, Robert. The Walking Dead. Image Comics, 2003.
- Rovelli, Carlo. The Order of Time. New York: Riverhead Books, 2017.
- Dalai Lama. The Universe in a Single Atom: The Convergence of Science and Spirituality. New York: Morgan Road Books, 2005.
- Emily St. John Mandel. Station Eleven. New York: Alfred A. Knopf. 2014
Comentários
Enviar um comentário