Jogar com a Realidade (2024)

O livro "Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World" (2024) da neurocientista Kelly Clancy, é uma obra fascinante que explora a intrincada relação entre os jogos e a construção de realidade. Num tom académico, mas muito acessível, Clancy conduz o leitor por uma viagem histórica, filosófica e científica, demonstrando como os jogos, desde os mais simples aos mais complexos, têm influenciado e moldado as sociedades, as culturas e até mesmo a forma como percebemos o mundo, deixando alguns avisos claros sobre a excessiva crença nos mesmos.

A autora estrutura o livro em torno de uma tese central: os jogos não são meras distrações ou passatempos, mas sim ferramentas poderosas que têm desempenhado um papel crucial na evolução humana. Clancy argumenta que os jogos são uma forma de simulação da realidade, algo que tenho vindo a considerar na última década, permitindo-nos experimentar, aprender e prever resultados em contextos controlados. Esta capacidade de "jogar" com cenários hipotéticos é fundamental para o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência, inovação e socialização.

A autora recorre a exemplos variados, desde os jogos de tabuleiro da Antiguidade até aos jogos digitais, passando por jogos de azar, desporto e até os jogos de guerra. Cada capítulo é dedicado a um aspecto específico da influência dos jogos, com relações com a matemática, a economia, a política ou a psicologia. Clancy também explora como os jogos reflectem e reforçam valores culturais, servindo de espelhos das sociedades que os criam.

1. Jogos como Ferramentas de Aprendizagem e Inovação

Destaca como os jogos têm sido utilizados ao longo da história para ensinar competências, testar estratégias e resolver problemas. Por exemplo, os jogos de tabuleiro como o Go” ou o “Xadrez” não só desenvolvem o pensamento estratégico, como também reflectem as complexidades da guerra e da diplomacia. Destaca-se também a forma como os videojogos modernos, e os seus mundos virtuais, permitem aos jogadores experimentar realidades alternativas e desenvolver competências cognitivas e sociais.

2. Jogos e a Construção da Realidade Social

A autora explora como os jogos influenciam e são influenciados pelas estruturas sociais, argumentando que os jogos são microcosmos da sociedade, reflectindo e reforçando normas, hierarquias e valores. Por exemplo, os desportos modernos, com as suas regras e competições, espelham a meritocracia e o espírito de competição das sociedades capitalistas.

3. Jogos e a Filosofia

O livro aborda questões filosóficas profundas levantadas pelos jogos, como a natureza da realidade, o livre-arbítrio e o determinismo. Clancy sugere que os jogos nos permitem questionar e redefinir os limites da realidade, desafiando-nos a pensar de forma crítica sobre o mundo que nos rodeia.

4. Jogos e a Psicologia 

O livro é percorrido por um trabalho de fundo de análise da psicologia por trás dos jogos. Explora-se o modo como os jogos satisfazem necessidades humanas básicas, tais como a busca por significado, o desejo de controlo e a necessidade de conexão social. 

Neste ponto, a autora discute e apresenta casos claros dos enormes perigos de tentarmos importar os sistemas de jogos para toda a formulação da nossa sociedade, tocando em assuntos como as métricas e rankings, assim com os vieses criados por estes.

Games are a particularly dangerous fiction because they shape how their players act and make choices. Games are like maps that remake the world in their own image. The rules and rewards of a game dictate how its players behave. A game can replace people’s actual preferences with those rewarded by its scoring function. They can even be used to endow unconscious computer programs with the illusion of intention. These programs amount to mathematical functions yet can appear to talk, desire, and act in ways specified by their programmers, simply because they were designed to maximize some desired quantity. People, unlike these mathematical functions, are much more than reward optimizers. Yet we aren’t immune to a game’s influence. Game theory is not a very good model of people, but it’s good enough to be trouble.

Game theory, it was promised, would help us solve pressing collective problems like nuclear proliferation, climate change, and pandemic outbreaks. It fed into the fantasy that the mind—a product of biology—works in orderly ways, amenable to clean mathematical analysis. Channeled through the right filter, we might perfect human nature and clarify our minds. But humans are not merely players, acting to maximize preprogrammed preferences. What economists have long classified as biases in human behaviors are not flaws in our brains’ computation. In many cases, they are the computation itself. Humans are imperfect learners—a reality that economists must seriously contend with. The notion of bias is particularly insidious because it suggests that people can’t reliably make choices in their own interest. As a result, economists, technologists, and policymakers sometimes deem themselves justified in substituting their own.

In fact, game theory promised to automate decisions altogether: we’d simply follow the choices dictated by its synthetic rationality. This was a seductive promise in the era of nuclear diplomacy, when decisions made by a few people might have undone the world. It would have been no one’s fault if their models had failed: they’d simply obeyed the inexorable logic of the situation." (Excerpt from the Epilogue)

"Playing with Reality" foi uma experiência intensa e enriquecedora, para mim, pelo modo como junta psicologia, filosofia e jogos numa análise da cultura e economia da nossa realidade contemporânea. Clancy não só convida a reflectir sobre o papel dos jogos, sobre o seu pontencial de inovação, mas também a reconhecer o seu potencial para a disrupção das nossas sociedades. É uma leitura obrigatória para quem se interessa pela intersecção entre cultura e tecnologia.

Deixo uma talk da autora, sobre este livro, na The Royal Institution.

Comentários

  1. Obrigada, Nelson, fiquei interessada, vou também ver a talk.

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  2. Esqueço-me sempre de fazer login quando comento :)

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