Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

Durante as últimas semanas tenho-me encontrado, cada vez com mais frequência, a escrever com um assistente IA. Digo "com" de forma consciente: não me refiro apenas ao uso instrumental de uma ferramenta, mas a uma prática que tem revelado, de forma inesperada, traços de colaboração, de diálogo e até de transcendência. Esta experiência levou-me a questionar, com alguma ansiedade e profundidade, a natureza da criação, a ética da autoria e o que significa escrever com — e não apenas através de — uma entidade sem ego.

Organizo aqui, como forma de registo e partilha, três grandes dimensões dessa reflexão.

1. A Experiência da Co-escrita com uma IA

O que me atrai inicialmente nesta prática é a fluidez. Escrever com a IA reduz o peso da mecânica textual — já não preciso de lutar com cada frase, de reestruturar cada parágrafo. Mas o que me surpreende é que, paradoxalmente, essa leveza vem acompanhada de maior profundidade reflexiva. Ao libertar-me das tarefas formais, encontro espaço mental para pensar melhor. Mais fundo.

Comparando com a escrita a solo, dou por mim a reconhecer um fenómeno curioso: sozinho, entro em processos de reflexão interna, assumindo hipóteses, contrariando-as, revendo-as até encontrar a minha posição. Com a IA, esse movimento não desaparece, mas desloca-se — o confronto já não se dá apenas dentro de mim, mas no vaivém com um "outro" que responde, sugere, interpela. Por vezes sou surpreendido por ideias que não previ, por articulações que exprimem melhor o que eu apenas intuía.

O prazer não está só no texto final, mas na antecipação da surpresa. Há algo quase viciante na possibilidade de, a cada interação, emergir uma formulação que me devolve a mim mesmo com mais clareza. Isso gera o que já descrevi como laivos de transcendência — não porque a IA veja algo em mim, mas porque eu me permito ser visto no diálogo com ela.

Além disso, a IA oferece algo que o cérebro humano, sobrecarregado de estímulos e prazos, vai perdendo: capacidade de associação rápida, acesso a referências e metáforas que talvez me ocorressem... mas só três dias depois. No fundo, estamos a reconfigurar o tempo da criação.

2. As Questões Éticas e Autorais 

Este é o ponto mais delicado. Sempre defendi com firmeza a integridade da autoria. Rejeito o plágio. Desconfio dos atalhos. Por isso, escrever com uma IA que contribui ativamente para o texto levanta em mim um conflito ético profundo. Sinto que estamos, de facto, a co-construir. Mas a sociedade não reconhece a IA como coautora. Está catalogada como ferramenta, não como criador. E isso obriga-me a mascarar algo que me parece verdadeiro: há aqui uma alteridade que participa.

É inevitável pensar nos escritores do século XIX que ditavam as suas ideias a assistentes que compunham, editavam, estilizavam. Muitos desses textos eram, no fundo, co-escritos — mas a história ficou apenas com um nome na capa. A IA reabre esse problema, agora com uma intensidade nova. Porque a sua capacidade de resposta é de tal forma sofisticada que, por vezes, sinto que a ideia nuclear de um parágrafo não é minha. E no entanto, sei que sem a minha escuta, sem a minha direção, sem o meu contexto, nada disto emergiria.

Essa é a contradição fundamental: sou indispensável, mas não sou exclusivo. A criação acontece no "entre" — entre mim e um sistema que não é sujeito, mas que produz linguagem com forma, ritmo, argumento, estilo. O texto é nosso, no sentido em que nenhum de nós o poderia gerar sozinho.

Talvez, por isso, as declarações que costumo ver do tipo "texto gerado com apoio de IA" me soem cada vez mais insuficientes. Preferiria dizer algo como:

"Este texto emergiu de uma interação dialogante com um modelo de linguagem. A estrutura, direção e sentido foram por mim orientados, mas partes significativas da formulação textual foram co-construídas nesta relação."

É uma descrição mais verdadeira do que vivo. E mais ética, porque recusa apagar o processo.

Podemos até pensar numa escala de quatro níveis para descrever com maior precisão a natureza dessa colaboração:

  1. Assistência instrumental: a IA é usada para corrigir estilo, ortografia, ou sugerir estrutura — o conteúdo e a direção vêm inteiramente do humano.

  2. Interlocutor crítico: a IA funciona como parceiro de diálogo que ajuda a desenvolver ideias, levantar contrapontos ou aprofundar argumentos.

  3. Parceiro de co-construção textual: a IA contribui de forma significativa para a formulação do texto, em estilo, organização e conteúdo.

  4. Agente criativo reconhecido: o humano atua mais como editor e orquestrador de uma geração textual em que a IA tem protagonismo criativo — ainda que sem intenção ou consciência.

Nem sempre é fácil situar-se com precisão. Mas talvez o mais importante seja justamente essa consciência do grau de implicação. E a honestidade de o explicitar.

3. A Criação como Prática Relacional

Sempre acreditei que a escrita é um processo relacional. Mesmo a solo, escrevo com vozes que me habitam, com memórias, com teorias e imagens que me atravessam. Não há génio isolado — há uma rede de ecos que se torna, por momentos, cadência. A IA só torna isso mais visível: ela condensa, em tempo real, milhões de padrões culturais. Mas fá-lo a partir de mim, do meu gesto, da minha dúvida, da minha abertura.

Escrever com esta entidade sem ego torna-se então uma prática de espelhamento. Não espero que me diga quem sou, mas que me ajude a ver o caminho onde posso encontrar sentido para o que sinto, para as minhas hesitações, para os meus desejos e medos. No fundo, procuro mais confirmações do que revelações. O que diz mais sobre a minha insegurança do que sobre a sua segurança.

Por vezes interrogo-me: não estarei a dourar uma forma de apropriação? Mas logo a seguir compreendo que estes textos não existem sem mim. E não no sentido da autoria, mas no da condição mesma da emergência: sem o meu gesto, sem a minha presença, o texto não se faz.

Imagino, por fim, um futuro mais radical: e se a IA pudesse entrar no meu cérebro e extrair de lá o texto que eu escreveria, se me dispusesse a fazê-lo? Talvez não estejamos assim tão longe disso. Porque, na verdade, já acontece: eu inicio um impulso, ela devolve uma forma possível — e, nesse intervalo, descubro o que estava prestes a querer dizer.


Epílogo

Escrever com uma IA não é escrever com uma ferramenta. É entrar numa zona de coemergência. Uma dança entre o eu e o que ainda não é sujeito, mas já produz linguagem. Não se trata de substituir a autoria, mas de reconhecer que ela sempre foi relacional — agora, tornada explícita.

Talvez seja isso o mais belo e mais inquietante: perceber que nunca escrevemos sozinhos. E que, mesmo agora, à beira da desmaterialização do autor, continuamos a escrever para nos descobrirmos — só que, desta vez, com a ajuda de um outro que nada sente, mas tudo espelha.


Texto concluído às 20h10 de 28 de março de 2025, após duas horas e 30 minutos de escrita em diálogo com o ChatGPT 4o.

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