Atos Humanos (2014)
Há livros que não se leem apenas — atravessam-nos. Atos Humanos, de Han Kang, é um desses livros. Terminei a leitura durante a semana que passou, mas ainda não me desliguei dele. Não é um romance que se devore; é um texto que se suporta, por vezes com dificuldade, como quem segura na mão um fragmento de memórias indigestas mas necessárias.
Desconhecia os acontecimentos de Gwangju em 1980. Foi um choque. Sei o quão dificil tem sido a história da Coreia do Sul, desde a relação com o Japão, ao problema da divisão nunca sanada entre norte e sul, mas não tinha ideia das ditaduras que governaram o país nos anos mais recentes, e menos ainda desta violentíssimo golpe de Estado e de todo o horror que se lhe seguiu. A brutalidade da repressão, a frieza institucional, e sobretudo o apagamento deliberado da história. Ao dar corpo a essas vozes silenciadas, Han Kang transforma o romance numa forma de acusação e num veículo de memória coletiva.
Se em A Vegetariana já se sentia uma escrita afiada, em Atos Humanos há um foco mais definido, um compromisso ético e político que sustenta cada frase. A narrativa é feita de múltiplas vozes, mas a costura que as une não é apenas formal — é temporal e emocional. A disposição cronológica dos capítulos intensifica o efeito do trauma acumulado, mostrando como a violência de um momento não se extingue no tempo, mas alastra, infiltra-se, corrompe silenciosamente o que vem depois.
Cada capítulo é uma nova ferida, intensa e dura à sua maneira. Mas essa sucessão não é gratuita — é precisamente essa continuidade que impede que os eventos sejam encarados como um acidente isolado, uma exceção no tempo. A dor é transversal, atinge crianças, adolescentes, mães, fantasmas...
Ao ler Kang, pensei no presente. No início de 2024, o presidente sul-coreano decretou a imposição da lei marcial. Vi protestos nas ruas, vi coragem. E agora compreendo melhor essa energia civil, essa prontidão para agir. Atos Humanos não é só uma janela para o passado — é uma lente para interpretar o presente. Talvez a sua maior virtude esteja aqui: recordar não apenas para chorar os mortos, mas para sustentar os vivos.
Por isso, importa analisar um pouco mais o lado histórico. O massacre de Gwangju ocorreu num momento de grande instabilidade política. O regime militar de Park Chung-hee governava com mão de ferro desde os anos 60. Após o seu assassinato em 1979, por um membro dos seus próprios serviços secretos, o país entrou num vácuo de poder. A esperança da população era de abertura democrática. Mas Chun Doo-hwan, general ambicioso, aproveitou o momento para tomar o controlo, suspender liberdades e declarar a lei marcial total. O que esteve em causa em Gwangju não foi uma sublevação ideológica externa, mas uma reação cívica à continuidade de um regime opressor com duas décadas de existência. Foi um movimento estudantil e civil que procurava democracia.
Durante anos, a versão oficial dos factos propagada pelo regime usou a ideia de infiltração comunista vinda da Coreia do Norte para justificar o massacre. Sabemos hoje, através de investigações posteriores e da abertura política dos anos 1990, que essa narrativa foi uma estratégia de propaganda. Não há provas sérias dessa influência externa. A "ameaça vermelha" serviu para conter o pânico interno e apaziguar aliados internacionais.
Por isso, compreendo agora que a ausência dessa perspetiva no romance não é uma omissão involuntária, mas uma escolha consciente. Han Kang não escreve para equilibrar pontos de vista, mas para amplificar vozes silenciadas. Ainda assim, como leitor externo à história coreana, senti a necessidade de compreender o contexto mais vasto, e nesse sentido estamos perante um livro que não se encerra, mas exige do leitor investigação.
O valor do livro, contudo, não se esgota na dimensão histórica. O que Atos Humanos nos oferece é uma experiência literária radical — radical no sentido de ir à raíz da dor, sem filtros, sem adornos. Uma escrita que rasga a carne do tempo e nos obriga a olhar o que preferíríamos esquecer. Um livro que, mais do que lido, deve ser escutado. Porque ali, no fundo da sua crueza, há ecos que não nos pertencem — mas que, depois de lidos, nos transformam.
GR: ★★★★★
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