Entre o Corpo e o Absurdo — Warfare (2025)

Em 2015, observei na análise a Ex Machina que a estética de Garland assenta não apenas no que nos dá a ver, mas sobretudo na forma como nos obriga a ver¹. Voltei a essa ideia em 2019, ao desmontar a «história de aniquilação» de Annihilation², e em 2020, quando Devs expôs o determinismo algorítmico que sufoca o futuro³. Ao longo deste percurso, o realizador interroga os limites entre ontologia e violência. Com Warfare, revisita esse nó, mas abandona o laboratório e o aparato metafísico para filmar um corpo que treme no centro de uma casa em ruínas.

Saí do filme a sentir‑me como quem se liberta de uma câmara hiperbárica: o som ainda a vibrar, a pele roçando os micro‑espasmos, a mente turva. Garland não quer que pensemos; quer que sintamos – que seja o corpo a lidar com o absurdo antes de o intelecto o tentar traduzir.

A narrativa é depurada ao extremo. Não há grandes arcos morais nem discursos tácticos; apenas o acúmulo de estímulos que nos empurra cada vez mais fundo para dentro do caos. A sequência dos dois soldados feridos, a gritar, enquanto quem os tenta socorrer também treme, funciona como núcleo: não há empatia hollywoodiana, há colapso sensorial. A câmara obriga‑nos a respirar um ar carregado de pó e medo.

Garland exibe, antes do ataque, a sofisticação comunicacional do exército americano: drones, rádios, protocolos milimétricos. Parecem peças de coordenação perfeita. Depois, quando a poeira assenta, quase ninguém morre e todos – soldados e inimigos – abandonam o cenário como actores exaustos de um ensaio geral. A guerra revela‑se quase farsa, incapaz de produzir lógica. Mas as casas ficam destruídas e as famílias em pedaços, mas ninguém sequer olha para trás, é um final duríssimo que só se compreende depois.

Esta opção de filmar o instante que antecede o colapso – aquilo a que chamo pré‑trauma – alinha Warfare com o clima febril de Apocalypse Now, mas sem descida à loucura declarada. Ficamos suspensos no ponto de ebulição, quando o corpo já entende que a lógica falhou, mas a mente ainda não deu nome ao horror.

Vivemos submersos em imagens, alertas, feeds infinitos. Garland não tenta competir com esse ruído: condensa‑o num tubo experimental e obriga‑nos a atravessá‑lo. Por isso o impacto é tão físico. A verdadeira conclusão do filme acontece lá fora, nos minutos em que a tensão sai devagar dos músculos e o cérebro, pouco a pouco, volta a ligar as luzes.

De Ex Machina a Annihilation e Devs, Garland contrariou o fascínio tecnológico: primeiro com a inteligência artificial que quer existir, depois com o espaço alienígena que redesenha moléculas, por fim com o código que determina o devir. Em Warfare, interroga o que resta de humano quando a lógica se esgota no campo de batalha. A resposta não chega em jargão filosófico; chega em vibrações, silêncios cortados a meio, explosões que ferem os ouvidos.

Do epílogo, fica uma ferida, a consciência de que antes do discurso racional o corpo sente. E que talvez a arte – como a guerra – não precise de justificar-se, basta expor-se para nos obrigar a perguntar: vale mesmo a pena?


¹ «A vontade de ser e recriar o humano», Virtual Illusion, 12 Jun 2015 – https://virtual-illusion.blogspot.com/2015/06/a-vontade-de-ser-e-recriar-o-humano.html
² «O Mundo: História de Aniquilação», Virtual Illusion, 13 Set 2019 – https://virtual-illusion.blogspot.com/2019/09/o-mundo-historia-de-aniquilacao.html
³ «Devs (2020)», Virtual Illusion, 15 Abr 2020 – https://virtual-illusion.blogspot.com/2020/04/devs-2020.html

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