A Cassandra da Casa Fechada
Não saí bem deste filme. Fiquei chateado. Transtornado. Quase irritado. Não porque falhe, pelo contrário, talvez tenha sido demasiado eficaz. O que me perturbou foi a ausência de alento, de rutura, de qualquer abertura. O que me doeu foi ver Leila, que tinha tudo — energia, visão, lucidez — terminar soterrada num mundo que não a merecia. Fiquei magoado porque o filme não lhe deu o espaço de florir, de transformar, de desbravar o seu caminho. Sou um amante das histórias que mostram como se sai, como se cresce, como se transforma. E aqui, tudo ficou igual. Tudo permanece fechado.
Leila podia ter sido como Tara Westover, como tantas mulheres que desafiam a gravidade das suas origens e rompem com os códigos herdados. Mas não. Aqui, o que a impede não é um sistema político, nem uma ideologia fechada, é uma teia de afetos mal resolvidos, um emaranhado de culpas e dívidas emocionais, onde a incompetência masculina, não religiosa, não filosófica, apenas vaidosa e estúpida, impede o mundo de abrir. E talvez seja isso que ainda me corrói: a sensação de ter assistido ao enterro de uma mulher viva.
Leila não é uma mulher excêntrica, nem uma figura de exceção. A sua força está na clareza, na organização, na tentativa de reconstruir o que os outros deixaram apodrecer. Vê o que ninguém quer ver: que a família está exausta, que os homens à sua volta vivem numa adolescência prolongada, e que o pai é um tirano decadente cuja única herança é o orgulho. A mãe, presença espectral, observa, mas nunca age. E assim, tudo se repete.
Mas ver, neste universo, é um crime. Ver é trair o pacto do não-dito. Leila torna-se insuportável porque insiste em nomear o que os outros fingem não existir. Torna-se espelho, e ninguém quer ver-se ao espelho. Tal como as protagonistas de Ferrante ou Ernaux, ela rompe com o silêncio funcional que mantém a estrutura viva, mesmo quando já está morta por dentro.
E o que torna tudo mais cruel é que Leila não quer fugir. Não sonha com evasão individual. Quer que todos se levantem com ela. Ama os irmãos, ama a mãe, até ao pai tenta, num gesto final de esperança, oferecer dignidade. Mas o que recebe é resistência passiva, sabotagem disfarçada de afeto, e a constante acusação de que “não compreende o que é a família”.Mas Leila compreende melhor do que todos. Compreende que aquele amor que circula entre eles já não alimenta, só cobra. Só sufoca. É um amor saturado de vergonha e dívida. É por isso que tudo recai sobre ela. Não porque os outros a odeiem, mas porque, no fundo, sabem que sem ela aquilo desabaria. E odiam-na por isso mesmo: por ser essencial. Por mostrar, com cada gesto, que tudo aquilo se aguenta apenas porque ela insiste em manter de pé o que já está em colapso.
A família, neste filme, não é abrigo. É uma prisão feita de pequenos afetos que impedem o florescimento. Leila tenta o impossível: reconstruir a casa sem destruir os que a habitam. Mas eles não a deixam. Preferem vê-la falhar a admitir que dela dependem. É o orgulho estéril dos que não sabem transformar nada — e não suportam quem tenta.
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