Achilles, ou a elegância da morte anunciada
Nunca escrevi sobre canções neste espaço. Sempre associei o formato à fruição íntima e passageira, algo que se sente mas raramente se detém para ser desmontado. Mas de vez em quando surge uma exceção, uma canção que se impõe como texto, como narrativa plena, onde o tempo se dobra e os versos nos falam como personagens. Achilles (2025), dos Divine Comedy, é uma dessas raras canções.
Escrita e cantada por Neil Hannon, Achilles começa como uma elegia antiga. Um guerreiro contempla a morte de um amigo e promete vingança. Estamos em plena Ilíada, entre barcos queimados e deuses distraídos. Aquiles, Pátroclo, a cólera transformada em destino. A canção invoca esse universo mítico com sobriedade, sem grandiloquência, apenas sugerindo o peso trágico com versos contidos: “You slew my sweetest friend / His death will be avenged”. A música não se exalta — a orquestração embala. Como se dissesse: conhecemos este lamento há milhares de anos.
O que surpreende é o salto seguinte. A segunda estrofe transporta-nos para uma guerra moderna. Um soldado comum, coberto de lama, carrega no bolso A Shropshire Lad, de A.E. Housman, um livro que por si só já é uma ode à juventude perdida e à morte precoce. Encontramos ali não só a repetição da violência, mas também um eco de intimidade entre homens, entre guerras, como se a beleza precisasse de sobreviver, mesmo num campo de batalha. A canção parece sussurrar: a tragédia repete-se, mas nunca da mesma forma.
E então, como quem esvazia o cenário de guerra e o devolve à rua onde vivemos, Hannon canta:
“I saw a man this morning / He was turning fifty-three.”
Nesse momento, deixei de ouvir a canção como espectador. Vi-me ali. Com cinquenta e um anos, a ouvir aquela frase como um espelho. Não era Aquiles, nem um soldado anónimo. Era apenas um homem. Um homem que sabe que um dia será nada. Um homem que sabe que a sua única certeza é a fragilidade.
A última frase é o golpe final:
“Death is the Achilles heel.”
Em poucas palavras, Hannon transforma a metáfora mítica em realidade biológica. A vulnerabilidade de Aquiles já não é um ponto no calcanhar — é o destino de todos os vivos. Todos temos um ponto fraco, e esse ponto é o tempo.
A beleza desta canção está em tudo o que não diz. Nunca fala diretamente da velhice, da melancolia ou da perda. Mas tudo isso está lá, embebido na voz de Hannon, nos arranjos suaves, no refrão que volta sempre com a mesma pergunta:
“Was it so hard to die, Achilles? / So very hard to die?”
A morte, como fim físico, é talvez fácil. O difícil é aceitá-la como destino partilhado. O difícil é vê-la aproximar-se de nós com a leveza de uma canção pop.
Talvez por isso Achilles seja, no fundo, um pequeno poema. Um poema que fala connosco por camadas — mito, história, presente, até nos tocar exatamente onde dói: na consciência daquilo que somos. E no pouco tempo que nos resta.
Nota: Este texto foi escrito em coautoria com um LLM, a partir de uma escuta íntima da canção "Achilles", dos Divine Comedy. A estrutura e leitura crítica emergem do meu olhar; a forma e polimento da escrita resultam de um processo de coescrita.
Comentários
Enviar um comentário