O corpo que Homero não escreveu
Hoje escrevi sobre Aquiles. Ontem, sobre Penélope, no Letterboxd. E percebi que não fazia sentido deixá-la fora deste espaço. Se há algo que Achilles (2025), dos Divine Comedy, e Return (2024), de Uberto Pasolini, me revelaram nestes dois dias, foi isto: quanto mais o tempo passa, mais me apego à Ilíada e à Odisseia. Não pela fidelidade ao mito, mas porque neles encontro as origens do que ainda tentamos ser, e o contorno daquilo que só muito recentemente começámos a escrever.
Return tenta o impossível: dar densidade psicológica e emocional a personagens que nunca foram concebidas para a ter. Juliette Binoche, como Penélope, traz à pele o peso do tempo e do silêncio. Ralph Fiennes, como Ulisses, regressa não como herói, mas como homem esvaziado pela guerra. O filme quer redimir o reencontro com uma complexidade humana que o mito nunca previu — e ao tentar, expõe aquilo que está ausente no coração da epopeia.
A Odisseia é uma maravilha de estrutura, ritmo e tensão narrativa, mas as suas figuras são arquétipos, não pessoas. Ulisses é astuto, não ambivalente. Penélope espera, mas nunca a sentimos a esperar. O filme procura dar corpo e alma ao que foi construído como função e destino — e é nesse esforço, nessa falha quase comovente, que ele brilha. Porque é precisamente ao tentar humanizar o inumano — e não o conseguir — que o filme nos toca.
Se a Ilíada nos dá o gesto da fúria, do destino incontornável e da glória sangrenta, a Odisseia oferece-nos o outro lado do épico: o retorno, a espera, o tempo como erosão. Aquiles morre jovem, na crista da sua cólera; Ulisses envelhece lentamente, atravessando ilhas e mentiras, mas regressa, só para encontrar um lar que já não o reconhece. São dois modos de morrer: um, no auge; o outro, na curva descendente.
Mas em ambos os poemas há algo que permanece ausente: o interior. Nem Aquiles sofre como homem, nem Penélope deseja como mulher. As emoções são funções narrativas. A linguagem é ação. Falta o silêncio. Falta o pensamento quebrado. Falta o corpo hesitante.
É por isso que Achilles, a canção de Neil Hannon, me tocou de forma tão íntima. Porque ali, num poema breve disfarçado de pop orquestral, vejo algo que Homero nunca nos deu: um herói que morre com dúvida, e um homem de 53 anos que se reconhece vulnerável. A canção dobra o tempo: da Grécia à guerra moderna, da trincheira ao espelho da meia-idade. E no fim, o refrão não pergunta por glória, pergunta apenas:
“Foi assim tão difícil morrer, Aquiles?”
Como se finalmente nos perguntasse a todos:
E viver?
Ainda vale a pena, sabendo o fim?
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