O Outro que Desejamos Ser

Nunca desejámos tanto deixar de ser quem somos. Nunca nos olhámos tanto ao espelho com a sensação de que nos faltava algo, de ter feito outras escolhas. Não sendo propriamente o desejo de felicidade que nos move, mas apenas o simples impulso de não continuar como estamos. A frase que abre o romance (ver abaixo) de David Foenkinos sintetiza algo mais vasto do que o drama privado de um casal: exprime o mal-estar de uma era que deixou de confiar na estabilidade dos vínculos, sejam eles afetivos, profissionais ou identitários. Já não vivemos em função de ideais duradouros, mas de pequenas tentativas de reconfiguração — como se a vida fosse um protótipo contínuo que vamos abandonando a cada falência emocional.

Nunca antes uma época foi tão marcada pelo desejo de mudar de vida.

Esse desejo de mudar — de casa, de cidade, de profissão, de corpo, de parceiro, de narrativa — não é sintoma de fragilidade. É um sinal desta época. Um modo de estar onde a separação é menos um evento e mais uma ferramenta de autoconhecimento. Já não se termina um casamento com escândalo ou culpa, mas apenas com a consciência de que se tentou tudo. Com a dignidade tranquila de quem não quer continuar a fingir.

Neste texto, procuro explorar essa normalização melancólica da separação e do desejo de ser outro através de duas obras contemporâneas — La Vie Heureuse (2024) de Foenkinos e Sobre o Cálculo do Volume I (2020) de Solvej Balle — que, de modos distintos, colocam o amor num cenário de implosão silenciosa. Ambos os textos recusam o dramatismo fácil, preferem o gesto contido, a dissolução progressiva. Ao seu lado, canções recentes da música francesa, ampliam esse sentimento coletivo de perda sem ilusão.

Trata-se, em suma, de compreender como chegámos a este ponto: em que o amor deixou de ser vivido como fim, e passou a ser visto como capítulo; em que mudar de vida é a hipótese constante, mesmo quando tudo parece correr bem. Este texto é também, inevitavelmente, um gesto de autoescuta: um modo de mapear a minha própria travessia pelo desejo de mudar, sem saber ainda o que esse outro eu poderia ou deveria ser.


Desfazer-se em silêncio

A literatura do desmoronamento conjugal já não precisa de grandes catástrofes para nos abalar. Em La Vie Heureuse e em Sobre o Cálculo do Volume I, o fim do amor acontece sem gritos, sem traições, sem reviravoltas dramáticas. A separação torna-se um gesto quase fisiológico, previsível, melancolicamente natural. O que une estes dois livros é uma escrita que acompanha a falência do amor não como ruína súbita, mas como erosão quotidiana, onde a dor se dissolve num mundo que continua, indiferente.

Foenkinos opta por uma alternância entre a voz dele e dela, o que à primeira vista parece conferir equilíbrio, mas acaba por acentuar a distância. Essa estrutura, semelhante à de Connemara (2022), impede a fusão narrativa entre as personagens e sugere que o “nós” já não é mais possível. O leitor transita entre dois discursos que partilham o mesmo espaço, mas que nunca se encontram verdadeiramente. Como na vida, os casais estão juntos à superfície, mas separados por dentro.

Em Solvej Balle, essa separação atinge outra ordem. Aqui, não há alternância de vozes: tudo é narrado pela protagonista feminina, que descobre estar presa na repetição infinita de um único dia. A anormalidade radical da situação não a leva ao desespero — pelo contrário, ela tenta com uma notável compostura manter o curso da sua vida, o casamento incluído, apesar de tudo se desarticular lentamente à sua volta. O marido envelhece, enquanto ela permanece imóvel no tempo. Os sentimentos transformam-se. A cumplicidade desfaz-se como um hábito que já não se reconhece. E tudo isto é dito sem explosão, mesmo quando o mundo deixa de responder. 

O mais inquietante em ambos os livros é que a dissolução do vínculo afetivo não é apresentada como falha ou tragédia. É descrita como uma consequência do tempo e da diferença, da vida que corre, de formas distintas, para cada um. É uma nova gramática afetiva que aqui se esboça: o fim do amor como algo natural, quase gentil, e por isso mesmo ainda mais doloroso

O outro que habita em nós

Há um momento na vida em que deixamos de querer que as coisas melhorem, e começamos a desejar ser outro. Não apenas viver diferente, mas deixar de ser quem somos, como se a própria identidade fosse a raiz do mal-estar. Esse desejo de evasão não é meramente fuga. É um gesto profundo de dissociação: um impulso que revela o cansaço acumulado da repetição interior.  

Nos dois romances aqui analisados, essa cisão torna-se central. Em La vie heureuse, a crise conjugal não nasce de um conflito visível, mas de um esgotamento interno. Os protagonistas procuram uma nova vida não porque o amor tenha falhado de forma trágica, mas porque eles próprios se tornaram irreconhecíveis dentro da vida que escolheram. Separar-se do outro é, em última instância, uma tentativa de separar-se de si mesmo — da versão de si que foi criada para sustentar aquele vínculo.

Já em Sobre o Cálculo do Volume I, a protagonista de Balle literaliza esse hiato identitário: o tempo deixa de correr, o mundo repete-se, mas ela continua a tentar habitar o seu lugar, mesmo quando tudo se esvazia. E é nessa tentativa de manter a aparência da normalidade que se revela o abismo. Ela já não partilha o tempo com ninguém, nem sequer com o marido. Está sozinha num presente eterno, forçada a continuar a ser quem é, mesmo quando tudo nela já pede transformação. É talvez a metáfora mais clara da vida conjugal que já não se renova: um amor que envelhece sem nós, enquanto permanecemos presos à mesma versão de quem fomos no início.

Este desejo de ser outro é antigo, mas a nossa época tornou-o crónico. Kierkegaard descrevia o desespero como a recusa ou a impossibilidade de reconciliar-se com o próprio eu, de ser si mesmo sem fuga, e sem orgulho. Montaigne escrevia para multiplicar os seus eus, para manter-se em trânsito. E Elena Ferrante, nas suas narradoras, exprime o mesmo impulso: não é o mundo que precisa de mudar, sou eu que já não me sirvo para esta vida.

A dissociação não é, portanto, patológica. É uma tentativa de reinvenção. E o desejo de mudar não é apenas capricho: é a expressão de uma consciência que já não se reconhece no papel que desempenha. Nos livros, como nas canções analisadas anteriormente, esse gesto surge como o novo drama silencioso da intimidade: o outro deixa de ser o problema, e passa a ser o espelho do nosso cansaço de nós próprios.

Talvez seja esse o verdadeiro fim do amor: não quando deixamos de amar o outro, mas quando já não conseguimos suportar a pessoa que somos ao lado desse outro.

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