Tolstoy e o Desejo

Vivemos num tempo em que o desejo, tornado visível, continua a provocar desconforto e julgamento. Não é um fenómeno novo. Desde sempre que os corpos, os rituais sociais e os jogos de sedução ocuparam o centro da atenção moral e da vigilância do olhar. A crítica à exibição feminina e ao erotismo público é antiga, e talvez nenhum texto a exponha com tanta crueza como "A Sonata a Kreutzer" (1889), de Lev Tolstói.

"The Kreutzer Sonata" (1891) de René-Xavier Prinet

Escrito no final do século XIX, este pequeno romance revela a forma como o desejo masculino se mistura com o ciúme, a violência e a crítica moral à liberdade das mulheres. Tolstoy não fala de redes sociais, mas fala de bailes. Não comenta o digital, mas descreve as missas dominicais onde as mulheres são exibidas como flores frescas e os homens circulam em busca de escolha. O que encontramos ali, nas palavras do narrador, tantas vezes odiosas, mas também lúcidas, é um retrato fiel das mesmas forças que continuam a organizar o desejo humano: a exibição, o julgamento, o ressentimento.

Tolstoy não está apenas a criticar costumes, está a denunciar a teatralidade social do erotismo. E fá-lo com desconforto e obsessão. Há nas suas palavras uma inquietação profunda com o facto de o desejo não ser domado pelas regras da moral, nem pelo contrato conjugal. A mulher casada continua a ser objeto de desejo, e a desejar. E isso, para ele, é intolerável.

Na Sonata, o baile é um mercado de corpos onde se mede o valor da mulher pela sua dança, pela sua pele exposta, pelo seu sorriso treinado. A missa transforma-se num palco de ostentação onde as mulheres vão “exibir-se”, cuidadosamente maquilhadas e trajadas, não para Deus, mas para os olhos dos homens. É uma coreografia do desejo mascarada de civismo.

O narrador não suporta que a mulher tenha prazer, que dance, que tenha passado, que tenha corpo. O que ele quer é um espelho, uma mulher que só exista em função do seu olhar. A sua obsessão não é o sexo. É o controlo.

Tolstoy queria apagar esse fogo, erradicar o erotismo fora da função reprodutiva, controlar o corpo feminino, submeter o desejo a uma moral ideal. O seu projeto é o da contenção total do desejo, porque teme o descontrolo que ele implica.

Mas o desejo não desaparece. Reprime-se, esconde-se, apodrece e volta a emergir como ressentimento, obsessão ou violência. Durante muito tempo também desejei o fim do desejo. A paz que viria com a indiferença. O alívio de não mais sentir a perturbação criada por imagens ou ideias. Mas quanto mais o tentava suprimir, mais ele se transfigurava em frustração. O desejo não se deixa matar. O que se pode, e talvez se deva, fazer, é aprender a habitá-lo.

Habitar o desejo é reconhecê-lo sem ser escravo dele. É perceber que ele acende, mas não tem de consumir. Que pode existir como lume interior, uma energia vital e criativa que não exige conquista, nem correspondência. É um desejo que existe por si, não contra o outro, nem para o outro. Um desejo que não precisa de apagar-se para deixar de ferir.

Este caminho não é neutro, nem fácil. Supõe escutar o corpo, sem lhe obedecer cegamente. Supõe aceitar que há dias em que o desejo irrompe com força, e outros em que desaparece. Supõe também um trabalho contínuo de distinção entre aquilo que se deseja e aquilo de que se precisa. Mas o que se precisa pode ser apenas um abraço, um gesto, uma escuta, um espaço de expressão, um silêncio partilhado.

Este é o ponto onde Tolstoy falhou. Porque confundiu o desejo com o pecado, a liberdade com a ameaça, o corpo com o perigo. E porque projectou na mulher a culpa da sua própria fragilidade. Mas nós podemos escolher outro caminho. Podemos deixar de acusar o mundo por nos excitar, e aprender, em vez disso, a escutar o que essa excitação nos revela sobre nós mesmos.

Habitar o desejo não é eliminá-lo. É libertá-lo do ciclo de culpa e exigência. É torná-lo parte de uma vida mais ampla, onde o prazer não é o centro, mas também não é um tabu.

Neste gesto, aproxima-se uma visão do desejo que já se encontra em Espinosa, para quem os afectos não devem ser combatidos, mas compreendidos e reorganizados pela razão activa, não no sentido da repressão, mas da transformação em potência. O desejo, para Espinosa, é a própria essência do ser humano enquanto "conatus", esforço de perseverar na existência, e, como tal, precisa de ser educado, não anulado.

Também a psicologia positiva, em particular Martin Seligman, propõe uma viragem: a de deixar de centrar a vida mental na patologia e na falta, para abrir espaço ao florescimento, à autonomia e à integração das emoções como componentes de uma vida significativa. Sob essa luz, o desejo pode ser visto não como uma falha a corrigir, mas como uma energia a integrar numa existência mais plena e consciente.

Entre o ascetismo de Tolstoy e o hedonismo contemporâneo, talvez se possa desenhar uma terceira via: aquela em que o desejo é habitado com lucidez, liberdade e responsabilidade.

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