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A mostrar mensagens de março, 2025

Escrever com a Máquina: reflexão sobre Autoria, Colaboração e Significado

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Durante as últimas semanas tenho-me encontrado, cada vez com mais frequência, a escrever com um assistente IA. Digo "com" de forma consciente: não me refiro apenas ao uso instrumental de uma ferramenta, mas a uma prática que tem revelado, de forma inesperada, traços de colaboração, de diálogo e até de transcendência. Esta experiência levou-me a questionar, com alguma ansiedade e profundidade, a natureza da criação, a ética da autoria e o que significa escrever com — e não apenas através de — uma entidade sem ego. Organizo aqui, como forma de registo e partilha, três grandes dimensões dessa reflexão. 1. A Experiência da Co-escrita com uma IA O que me atrai inicialmente nesta prática é a fluidez. Escrever com a IA reduz o peso da mecânica textual — já não preciso de lutar com cada frase, de reestruturar cada parágrafo. Mas o que me surpreende é que, paradoxalmente, essa leveza vem acompanhada de maior profundidade reflexiva. Ao libertar-me das tarefas formais, encontro espaço m...

Notas sobre "Everything Must Go" (2025)

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Terminei recentemente a leitura de Everything Must Go: The Stories We Tell About the End of the World de Dorian Lynskey, ou, para ser honesto, li até ao meio e depois fui lendo na diagonal. Não que o livro não tenha o seu valor. Lynskey apresenta um levantamento cronológico impressionante das narrativas sobre o fim do mundo, começando na Bíblia e avançando pelos séculos, atravessando temas como o último homem, a bomba, as máquinas ou pandemias. Um trabalho árduo, sem dúvida. Porém, a sensação dominante ao virar cada página foi a de uma oportunidade desperdiçada. O problema não está sequer na escolha de um enfoque marcadamente ocidental e cristão — uma limitação evidente, mas que aceitaria se viesse acompanhada de uma proposta clara. O verdadeiro vazio do livro reside naquilo que nele falta: pensamento. Lynskey faz um inventário, mas nunca arrisca uma interpretação, nunca procura responder ao que estes mitos e medos revelam sobre nós enquanto espécie, cultura ou sociedade. Tudo se...

Adolescence (2025): O realismo da incompreensão

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Em tempos de saturação audiovisual, quando tudo parece já ter sido tentado e filmado, surge uma série capaz de nos desarmar por completo. "Adolescence" (2025) , cocriada por Stephen Graham e Jack Thorne, impõe-se como uma experiência tão avassaladora quanto singular, não apenas pelo que mostra, mas sobretudo pelo que recusa mostrar. A série apresenta-se em quatro episódios, cada um filmado num único plano-sequência contínuo, conjugado com grandes planos (close-ups) sufocantes, criando uma imersão emocional de intensidade quase insuportável. A técnica formal não é mero exercício de estilo. O uso do plano-sequência sem cortes, aliado à proximidade extrema dos rostos das personagens, elimina qualquer possibilidade de distanciamento. Somos arrastados para dentro do espaço emocional dos protagonistas sem respiro, sem possibilidade de fuga. A câmara não nos oferece alívio; ao contrário, mantém-nos reféns, obrigando-nos a confrontar cada expressão, cada silêncio, cada hesitação. Lem...

Ego Tunnel de Thomas Metzinger

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Em "The Ego Tunnel" (2010) Thomas Metzinger propõe uma tese radical sobre a natureza da consciência e do “eu”. O autor sugere que aquilo a que chamamos “consciência” é, na verdade, uma espécie de interface de realidade gerada pelo cérebro – um “túnel” onde apenas certas informações são filtradas e apresentadas à perceção consciente. Daqui decorre a conclusão de que o “self” – a noção de um “eu” sólido e coeso – constitui um produto do funcionamento cerebral, não tendo existência independente para além dessa representação interna.  Para Metzinger, a consciência não espelha fielmente o mundo externo; em vez disso, oferece-nos uma versão simplificada e funcional da realidade. Esse “túnel” assegura-nos uma experiência estável e contínua de “quem somos” e de “onde estamos”, mas ocultando a verdadeira complexidade do mundo. Para isto contribui muito do trabalho de Benjamin Libet que questiona existência de livre-arbítrio. Não concordando com um conjunto de pontos, decidi alinhar os...

O Ministério da Perda de Tempo

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“O Ministério do Tempo” (2024) de Kaliane Bradley foi promovido com toda a pompa em termos de marketing, conseguindo acumular mais de um milhar de críticas no Goodreads antes mesmo do seu lançamento. Muitas delas descreviam-no como algo totalmente original. Interessei-me pelo lado da ficção científica, mas o livro revelou-se não só fraco na estrutura narrativa e na escrita, como também desprovido de originalidade. O marketing foi tão bem feito que o título chegou a figurar entre os nomeados para diversos prémios: Audie Award Nominee for Fiction (2025), Women's Prize for Fiction Nominee for Longlist (2025), Goodreads Choice Award for Science Fiction e Nominee for Debut Novel (2024) . O livro saiu em maio de 2024 e, ao longo do ano, as avaliações mantiveram-se consistentemente acima de 4 estrelas. No entanto, ao revisitá-lo agora, vejo que a sua média desceu para 3.6 – muito mais próximo das 2 estrelas que tenho para lhe atribuir. Começando pela história. A premissa de transportar p...