Agência não determinada

Este ano foi fértil na luta entre os defensores do determinismo e os do livre-arbítrio, com o livro "Determined" (2023) de Sapolsky a defender o primeiro, e o livro de Kevin Mitchell, "Free Agents" (2023), o segundo. Ambos são neurocientistas, Sapolsky na Universidade de Stanford, Mitchell no Trinity College de Dublin. Sobre o primeiro livro, já aqui dei conta, sobre o segundo, aconselho a leiturada da síntese de Bailey para a Reason. A meio de "Free Agents", cansei-me totalmente desta discussão. Já me tinha saturado com Sapolsky, mas agora decidi mesmo não voltar tão depressa a este tema. Cada lado dedica-se apenas e só a listar exaustivamente pontos que consideram essenciais e que demonstram como a razão está do seu lado. Contudo, a culpa não é deles, é do debate, do quão desprovido de sentido está.

"Determined" de Sapolsky e "Free Agents" de Kevin Mitchell, ambos publicados em outubro 2023. Imagem de Bill Sullivan.

É desesperante ver a tentativa continuada de ligar aquilo que acontece no mundo da física clássica com aquilo que acontece no mundo da psicologia, tal como já tinha dito a propósito de Sapolsky. Mas Mitchel ofereceu-me mais um ponto de vista essencial, o mundo da biologia, em particular da evolução das espécies. Todo o livro é baseado numa discussão sobre o surgimento da agência animal, ou seja, da vida, e como essa se diferencia de tudo o resto. Uma célula tem objetivos próprios, enquanto um calhau não. Como tal, existe todo um mundo distinto que está a ser comparado — da Física à Biologia à Psicologia — que não tem congruência, correlação e menos ainda causalidade atendível. 

Deixo 3 ideias centrais a partir de Mitchell que demonstram como a Biologia não pode ser misturada com a Física.

1 - Não repetição exata do comportamento animal. O comportamento de qualquer ser vivo nunca se repete, pode até gerar padrões, mas contem sempre variações, mesmo que ligeiras. Ou seja, prever como alguém se vai mover, correr ou saltar em dada situação não é o mesmo que prever a quantidade de energia que vai ser gasta por um objeto estático. Porque não temos forma de saber que ordem vai ser dada ao comportamento, logo não é possível definir qualquer equação que determine o movimento, nem sequer a energia gasta, já que ela depende do movimento intrínseco definido.

2 - Evolução adaptativa. A variabilidade genética nas espécies resulta em mutações totalmente aleatórias. Isto per se seria suficiente para eliminar qualquer determinismo. Mas mais importante, é que essa variabilidade é fundamental para garantir aos organismos vivos a adaptação às outras espécies e ambiente, no fundo garantir a sobrevivência. A vida não existiria num mundo predeterminado.

3 - Natureza não linear dos sistemas biológicos. A resposta de um organismo a um estímulo não é proporcional nem linear, mas é influenciada por uma interconexão de fatores. No fundo, aquilo que sustenta a não repetição de comportamente e a variabilidade da mutação das espécies. Pelo que não é possível determinar antecipadamente resultados

Os organismos vivos, em toda a sua diversidade, não seguem trajetórias predeterminadas, mas antes respondem de maneira única objetivos íntrinsecos e a estímulos externos, revelando em cada momento a singularidade que impossibilita a pré-determinação.

No final desta leitura, fica o trago amargo de que os defensores do determinismo acreditam que o facto de, um dia, poderem vir a traçar uma teia completa das causalidades do passado, tal será suficiente para depois traçar uma teia de causalidades no futuro.

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