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A mostrar mensagens de outubro, 2024

"The Peasants", de 1909 para 2023

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"The Peasants" (2023) é o segundo filme feito com a mesma técnica — rotoscoping e ilustração a óleo — usada no inesquecível " Loving Vincent " (2017), sobre a vida de Van Gogh, ambos produzidos pela polaca  BreakThru Films . Em "The Peasants" temos a adaptação de um clássico homónimo do Nobel  Władysław Reymont . O filme começa com composições belíssimas suportadas por cores e texturas que gritam pedindo para pararmos a imagem e admirarmos cada momento, saborear, sentir. A história demora a contextualizar, o romance original é de 1909, mas depois de entrar no conflito não nos larga mais. A mistura entre a enorme beleza visual e a intensa tragédia acaba por produzir um impacto em nós no final do todo, do qual não conseguimos sair passadas várias horas. É um hino à condição da mulher, um recordar do mundo de onde viemos.

A manipulação de Graham Hancock (Netflix)

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Eu não sou arqueólogo. Graham Hancock, autor da série Netflix "Ancient Apocalypse" (2022), também não é arqueólogo. Estudo e desenvolvo ciência, enquanto tecnólogo, Hancock escreve romances e desenvolve, quando muito, jornalismo. O que temos, nesta série, é alguém desesperado por atenção, a tentar vender a sua versão de um mito que não tem nada de novo — a existência de uma civilização altamente avançada desaparecida — tantas vezes rotulado de Atlântida , El Dorado , Shangri-La , Lemuria , Avalon , Agharta , etc. Tudo isto, suportado por grandes empresas de comunicação — Netflix e Joe Rogan — que precisam desesperadamente de arranjar histórias surpreendentes para faturar no final de cada mês.  8 episódios repletos de desinformação científica A ciência é baseada em evidências. As histórias são baseadas em mitos.  "Ancient Apocalypse" é um dos maiores feitos de Manipulação dos últimos anos, não apenas pelo uso de doses corretas de retórica — ethos , pathos e logos —...

Marie Curie, academia e família

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Se algum dia vos passar pela cabeça a ideia de fazer um doutoramento, leiam este livro, "Madame Curie" (1937), escrito pela filha, Éve Curie. A principal característica que alguém, desejoso de abraçar o caminho da ciência, deve possuir, é aqui apresentada no seu expoente máximo: a humildade . Sem humildade, não é possível fazer ciência. Pode-se fazer bons negócios, mas ciência, efetiva, muito dificilmente. Marie Curie aprendeu desde muito tenra idade a importância dessa humildade, mas também a importância da resiliência, do trabalho continuado e persistente para chegar ao conhecimento. A sua história de vida é um hino à Ciência. O sobrenome Curie veio do marido, Pierre Curie, com quem casou em 1895, responsável por propiciar as condições, em França, para que Marie Curie realizasse o seu doutoramento no qual viria a descobrir dois novos elementos, o Polónio e o Rádio. Mas Marie nasceu Maria Salomea Skłodowska na Polónia, em 1867. Se a sua história de 1895 até 1934 impressiona ...

Empathetic violence

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I've attempted to start reading ‘The Kindly Ones’ (2006) several times over the years, but without success. This time, I was more determined, driven by Delphine de Vigan's ideas about fiction and truth. I managed to force myself through the first 100 pages, but then I became bored. I struggled through 200 pages, 300 pages, and finally gave up at 350 pages. The initial premise of following the psychological interior of an SS officer during World War II intrigued me. Littell creates a realistic work, but he spends a long time describing seemingly trivial details. We follow the SS officer almost in real time, everything he does, all the people he talks to, his questions, doubts, and discomforts, but most notably, his enormous indifference to everything. While initially this indifference made it easier for me to visualize the Nazi crimes, making the graphic violence more emotionally neutral, gradually this indifference began to taint everything, rendering everything meaningless. Li...

O simplismo de "Atomic Habits"

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"Atomic Habits" (2018) está no top dos livros de não-ficção e de auto-ajuda há vários anos. Inicialmente não lhe prestei atenção, pois não me parecia trazer nada de novo. Contudo, com o passar dos anos, e com tanta recomendação, acabei por ceder a dedicar-lhe alguma atenção e tentar perceber o que tínhamos ali. A intuição inicial estava certa. Não só não há aqui nada de novo, como o que aqui temos apesar de poder parecer muito interessante para um número alargado de pessoas, pode transformar-se em algo problemático para quem padece de reais patologias do foro psicológico. O problema, é que o comportamento humano é algo tão complexo como aquilo que faz de nós aquilo que somos, e se reduzido a conjunto de indicadores simplistas —que até podem ser aplicados no design de um serviço ou de uma máquina — não devem ser listados, vendidos, desta forma como prontos a resolver os problemas de tudo e todos. A isto juntam-se as certezas do autor, dignas do autoconvencimento do ChatGPT. O ...

Kindred (1979)

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“Kindred” é um livro do seu tempo, mas é um livro que continua a fazer pleno sentido ser lido nas escolas, nomeadamente dos EUA, e  que não faria mal nenhum sê-lo também na Europa e América Latina. Octavia Butler é reconhecida como a primeira autora negra de ficção científica, e este seu livro é uma das evidencias que sustenta esse reconhecimento. Não só o tema é profundo, como o cenário usado para o discutir é emocionalmente inteligente. Temos uma escritora afro-americana nos anos 1970 que se vê de repente regressada ao passado da escravatura no sul dos EUA, tendo de lidar com as normas sociais do início do século XIX sob a cor da sua pele. O resultado apresenta-se como uma fusão, muito conseguida, entre “Time Machine” (1895) de HG Wells e “Beloved” (1987) de Toni Morrison. Entretanto, o livro ganhou uma adaptação recente para televisão . "Kindred" pode ser visto como uma simulação laboratorial, pela ficção, da vida em tempos de escravatura, oferecendo-nos não apenas a persp...

Muito barulho por nada

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“Co-Intelligence: Living and Working with AI” (2024) de Ethan Mollick transformou-se num sucesso de vendas e citações em muito pouco tempo, pelo que apesar do título não me oferecer nada de novo, acabei por ceder a ler para perceber de que era feito o hype. Não passou disso mesmo, ‘muito barulho por nada’. Mollick é um professor de gestão e inovação, grande entusiasta desta última geração de IA, pelo que dedica todo o livro a discutir as experiências que tem feito, a maior parte delas a nível meramente pessoal, ou seja, sem evidências. Por outro lado, quando cita estudos, fá-lo de forma ligeira, extraindo o que lhe interessa e ignorando o que não interessa, não mencionando o escopo e amostras reduzidas dos mesmos. Alguns casos são mesmo gritantes, e um deles abre logo o livro pelo que o transcrevo abaixo [1]. Ou seja, é um livro para amantes desta nova IA, para todos aqueles que acreditam que vão ter um assistente para fazer todo trabalho chato por si, mais, para todos os que pensam qu...

Nexus (2024)

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Este é o 4º livro de Harari que leio, depois de " Sapiens " (2011), " Homo Deus " (2015) e " 21 Lições " (2018), pelo que a minha experiência de leitura refletirá essas mesmas leituras prévias. Assim, se leram os livros anteriores, não esperem encontrar aqui qualquer nova ideia. Harari mantém-se colado aos temas desses livros prévios, com maior ênfase em Homo Deus e 21 Lições . O que Harari aqui tenta fazer novo é criar um modelo de análise política baseado em sistemas de informação, recorrendo a todo o seu conhecimento de História, juntando-o à sua sagacidade de análise e interpretação dos sinais contemporâneos. Contudo, esse modelo que parece ser o ponto de arranque do livro, e do próprio título, depressa passa a segundo plano para se centrar no que mais gosta de fazer, as análises de casos — questões éticas sobre política e  tecnologia — a partir do que vai realizando pequenas abstrações sobre a realidade.  O modelo que Harari começa por tentar desenha...