Marie Curie, academia e família

Se algum dia vos passar pela cabeça a ideia de fazer um doutoramento, leiam este livro, "Madame Curie" (1937), escrito pela filha, Éve Curie. A principal característica que alguém, desejoso de abraçar o caminho da ciência, deve possuir, é aqui apresentada no seu expoente máximo: a humildade. Sem humildade, não é possível fazer ciência. Pode-se fazer bons negócios, mas ciência, efetiva, muito dificilmente. Marie Curie aprendeu desde muito tenra idade a importância dessa humildade, mas também a importância da resiliência, do trabalho continuado e persistente para chegar ao conhecimento. A sua história de vida é um hino à Ciência.

O sobrenome Curie veio do marido, Pierre Curie, com quem casou em 1895, responsável por propiciar as condições, em França, para que Marie Curie realizasse o seu doutoramento no qual viria a descobrir dois novos elementos, o Polónio e o Rádio. Mas Marie nasceu Maria Salomea Skłodowska na Polónia, em 1867. Se a sua história de 1895 até 1934 impressiona pelas gigantes conquistas científicas, a sua história entre 1867 e 1895 ainda me impressionou mais por dar conta de um mundo tão recente, mas tão diferente daquele em que vivemos neste século XXI.

Pierre e Marie, 1895

Skłodowska nasce de dois pais professores, o que à partida nos apresenta todas as condições para potenciar a mulher cientista, contudo no século XIX e numa Polónia subjugada ao poder imperial da Rússia, ser filha de professores não lhe serviria de grande conforto, além dos genes e do ambiente intelectual. A irmã mais nova de cinco perderia a irmã mais velha quando fez 7 anos e aos 10 veria a mãe ser levada pela tuberculose. Com 16 anos terminou os estudos, recebendo a medalha de ouro da escola, tal como alguns dos seus irmãos, mas não pôde continuar para a Universidade por ser proibida às mulheres. Faz então um pacto com a sua irmã, Bronia. Esta, mais velha, iria primeiro para Paris, faria o seu curso em Medicina e quando voltasse iria Skłodowska no seu lugar. Para que o plano funcionasse, era necessário que Skłodowska enviasse todos os meses para Bronia metade do salário que iria receber como percetora de filhos de gente abastada. Até aos 24 anos, altura em que iria para Paris, Skłodowska continuou a estudar de modo autodidata e recorrendo a todo o tipo de partilhas de conhecimento que a sociedade lhe oferecia.

Não podemos esquecer que o livro é escrito pela filha Éve, a jornalista, que inevitavelmente lima as arestas e nos dá a ver, não raras vezes, qualidades sobre-humanas. Contudo, muitas dessas qualidades foram confirmadas por muitas outras biografias. Pelo que reconhecer a transcendência da luta levada a cabo por Curie toda à sua vida não nos deve surpreender. A contribuir para essa transcendência esteve o próprio Pierre Curie, outro ser imensamente dotado e tão ou mais humilde que a própria Marie, apesar de também proveniente de uma família de professores, mas neste caso francesa, com posses capazes de oferecer segurança e conforto. 

Pierre e Marie Curie, 1904

"— Vamos falar um pouco do nosso metal — disse ele [Pierre Curie] na sua voz serena. 

 — A indústria do rádio vai tomar grande incremento; sobre isso, não restam dúvidas. Aqui está uma carta de Buffalo: técnicos americanos querem iniciar uma exploração e pedem informações. 

 — E então? — responde Marie, pouco interessada no assunto. 

 — Então, temos de escolher entre duas soluções. Ou revelamos, sem restrição alguma, os resultados das nossas pesquisas e os processos de purificação… 

 — Naturalmente… 

 — Ou consideramo-nos os proprietários, os «inventores» do rádio. Nesta hipótese, há que tirar patentes e assegurar os nossos direitos de participação na indústria, antes de divulgarmos como procedeste para tratar a pecheblenda. Pierre faz um esforço para precisar de maneira objetiva a situação. Ao pronunciar a palavra «patente», ao falar em «assegurar direitos», a sua voz assume uma impercetível inflexão de desprezo. Marie reflete uns instantes, e diz: 

 — Impossível! É contrário ao espírito científico. Por descargo de consciência, Pierre insiste. 

— É como penso… Mas não quero decidir levianamente. A nossa vida é dura, e ameaça continuar sempre assim. Além do mais, temos uma filha… e talvez venham outros. Para eles, para nós, essa patente representaria muito dinheiro. Seria a vida assegurada, o sossego… — E menciona ainda, com um risinho, a única coisa a que não quer renunciar: 

 — Poderíamos ter também um belo laboratório. Os olhos de Marie imobilizam-se. O seu cérebro está a considerar as vantagens da recompensa material. Mas logo desiste. 

 — Os físicos publicam sempre na íntegra os resultados das investigações feitas. Se a nossa descoberta é suscetível de futuro comercial, isso é obra do acaso e não nos deve interessar. Além de que o rádio vai servir para a cura de doentes… Parece-me errado procurar auferir vantagens. Seria contrário ao espírito científico."

Pierre e Marie trabalharam durante mais de uma década dando aulas em pequenos estabelecimentos para sustentar o trabalho científico que desenvolviam num barracão alugado. Ambos foram mal-amados pela elite académica francesa pelo modo humilde como levaram as suas vidas, descorando as regras do convívio e vassalagem social que lhes granjearam alguns inimigos, e atrasaram a possibilidade de atingir posições académicas necessárias para sustentar a realização do trabalho científico com que sonhavam. O reconhecimento teve de vir de fora, com o primeiro Nobel, na Física, em 1903, para ambos. Pierre chegou a entrar na Sorbonne, mas por pouco tempo, já que um simples acidente com uma carruagem de cavalos o levaria em 1906. Marie ficava com duas filhas, e apesar de ser a única especialista no mundo em radiotividade, iria ter de esperar novamente pelo segundo Nobel, agora na Química, em 1911, para que a França, e também o mundo, se lhe subjugasse.

Primeira conferência de Solvay, Bélgica, em 1911. Marie Curie é a única mulher entre sumidades como Albert Einstein, Max Planck, Ernest Rutherford, Henri Poincaré ou Paul Langevin.

Esta história, em termos académicos é completamente fora da caixa, mas não termina em Pierre e Marie. A sua filha, Iréne, apenas um ano depois da mãe partir, receberia o Nobel da Química em 1935, também conjunto com o seu marido, Frédéric Joliot-Curie. E por fim, o marido de Éve, a autora desta obra escrita em 1937, Henry Richardson Labouisse, acabaria recebendo o Nobel da Paz em 1965. No total, a família de Marie Curie receberia 5 prémios nobéis, o que torna bastante mais fácil acreditar nas tais qualidades sobre-humanas.

Iréne, Marie e Éve, 1921, de visita aos EUA

Contribuindo para esta história académica fora da caixa, descobri agora, enquanto pesquisava para a escrita destas linhas que a única paixão de Marie Curie até 1891, antes de conhecer Pierre, Kazimierz Żorawski, com quem não casou por os pais deste a considerarem uma simples percetora, viria também a seguir a carreira académica, doutorando-se em Matemática, tornando-se Reitor da Universidade de Jagiellonian, e mais tarde, membro da Academia de Ciências da Polónia.

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