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A mostrar mensagens de abril, 2025

Preferia Não o Fazer

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Durante anos, mantive uma distância cautelosa de Herman Melville. A leitura de "Moby Dick" (1851) deixou-me com a sensação de um autor excessivamente enredado em descrições prolixas e atmosferas densas, características que me afastaram do seu universo literário. No entanto, ao deparar-me com "Bartleby, o Escrivão" (1853), fui surpreendido por uma narrativa que se desvia radicalmente daquele estilo: direta, sucinta e despojada. A estranheza foi tal que tive de confirmar duas vezes se o autor era o mesmo.​ "Bartleby" apresenta-se como uma anomalia literária do século XIX, antecipando preocupações formais e temáticas que só viriam a ser plenamente exploradas no modernismo do século XX. A escrita de Melville aqui é contida, quase minimalista, contrastando com o seu estilo anterior. Esta mudança não é apenas estilística, mas reflete uma profunda transformação na abordagem do autor à narrativa e ao significado.​ Neste texto, proponho uma reflexão sobre como ...

A loucura que não chega para quebrar a fantasia

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Realizado por Benoît Delhomme, Mothers' Instinct (2024) adapta o romance belga "Derrière la haine" (2013) de Barbara Abel , trazendo para o ecrã a história de duas mães cuja amizade é corroída por uma tragédia. Anne Hathaway e Jessica Chastain lideram um filme que parece, à superfície, um thriller psicológico tradicional — mas que, no seu subsolo, expõe algo mais inquietante — a derrocada de uma alma mascarada pela preservação da perfeição de uma era passada. Interpretado de forma magnífica pelas duas atrizes, o filme começa num compasso lento, impregnado de pequenos gestos quotidianos que ocultam tensões subterrâneas. Depois, acelera — primeiro timidamente, depois de forma vertiginosa — até mergulhar numa espiral de decisões insanas que culminam numa insanidade silenciosa, tão subtil que quase se confunde com a normalidade. É precisamente nesse bordado entre o realismo psicológico e a estrutura de thriller que o filme opera: encena uma época passada — os anos 1950 — mas ...

A Vida é Difícil (2022)

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Kieran Setiya, professor de filosofia no MIT, não oferece ilusões em Life is Hard . Desde o início, reconhece que os problemas da vida — pessoais, políticos, existenciais — são demasiado grandes para serem resolvidos apenas pela razão. Mas a filosofia, ainda assim, pode oferecer algo: não a cura, mas apaziguamento. Este livro é menos um tratado sistemático do que um passeio reflexivo. Setiya convoca grandes nomes — Iris Murdoch, Virginia Woolf, Simone Weil, Adorno, Marx, a Escola de Frankfurt — mas fá-lo com uma leveza rara no meio académico. Nunca pesa sobre o leitor; antes conduz-nos como quem conversa ao final da tarde, sentado à sombra, olhando o mar. Recuperando conceitos do seu livro anterior, Midlife: A Philosophical Guide , Setiya revisita a distinção entre atividades télicas (com um fim) e atélicas (sem fim), mas desta vez reconhece abertamente a importância da narrativa. É importante chegar ao fim e obter sentido, criar significado, não podemos é transformar tudo na vida ...

Paradise (2025)

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A nova série Paradise , da Disney, trouxe uma promessa ambiciosa: um thriller político pós-apocalíptico com uma estética trabalhada e um ritmo narrativo intenso. Criada por Dan Fogelman, a série apresenta um cenário intrigante – um bunker subterrâneo no Colorado, anos após um evento catastrófico, onde um agente do Serviço Secreto (Sterling K. Brown) investiga o assassinato do Presidente dos EUA. Mas, para além do enredo, o que me capturou foi a sua abordagem estética e estrutural – e, infelizmente, também a sua incapacidade de manter a excelência inicial. Os primeiros dois episódios de Paradise estão entre o melhor que já se fez em televisão. A série inicia com um impacto tremendo, criando uma tensão quase palpável através da montagem ágil, dos enquadramentos precisos e da utilização de silêncios e diálogos afiados. Há um minimalismo visual que funciona magistralmente – a contenção da mise-en-scène amplifica o sentido de urgência, obrigando o espectador a absorver cada detalhe com um...

Super Negligência

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Hoffman quer muito que acreditemos que a IA será o trampolim da humanidade. Que não há monstros debaixo da cama — só oportunidades. Mas a crença não basta. Superagency vende-se como um manifesto tecno-humanista, mas o que entrega é um panfleto corporativo disfarçado de visão ética. Hoffman procura afastar os fantasmas do apocalipse digital, mas ao fazê-lo apaga também os sinais de alarme. O tratamento que dá a obras como 1984 é revelador.  Mais do que ingenuidade, o forma como Hoffman aborda  1984 revela um perigoso vazio interpretativo. Ao sugerir que Orwell falhou ao não explorar as “possibilidades comunicacionais” dos telescreens, Hoffman transforma um dos símbolos mais densos da opressão moderna num defeito técnico — como se a distopia fosse um erro de design. A frase “the fact that you can be overheard also means you can be heard” ignora o papel central do medo e da vigilância internalizada nos regimes autoritários. Pior: pressupõe que bastaria vontade política para t...

Eulogy (Black Mirror, E5.S7)

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Há obras que não nos comovem por aquilo que revelam, mas pelo modo como o fazem. Eulogy , episódio  cinco da sétima temporada de Black Mirror, não me tocou por conter uma reviravolta comovente, nem por recuperar a imagem de um amor perdido. Tocou-me porque soube conduzir, com precisão, o gesto de revisitar uma memória — ponto por ponto —, suportado por uma IA realisticamente desenhada. A força do episódio não está tanto na dor do que se perdeu, mas na coreografia do recordar: o modo como uma imagem puxa uma pergunta, como uma música arrasta uma sensação esquecida, como o olhar sobre um objeto antigo pode fazer tremer um mundo interior inteiro. O episódio não obriga à catarse, mas convida a lembrar aquilo que esquecemos por defesa, aquilo que só pode ser revisto se houver alguém a caminhar connosco. Foi isso que me deixou em êxtase, a rara experiência de ver uma obra capaz de encenar a complexidade do recordar sem pressa, sem manipulação, sem atalho emocional. A representação do cu...

The Alignment Problem (2020)

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Brian Christian, conhecido por explorar as fronteiras entre tecnologia e humanidade, oferece com T he Alignment Problem: Machine Learning and Human Values  uma das reflexões mais lúcidas e acessíveis sobre os dilemas éticos e técnicos da inteligência artificial contemporânea. Lançado em 2020, o livro permanece altamente relevante, mesmo num cenário transformado pelos avanços pós-GPT-3. Ao invés de envelhecer, a obra adquire um valor quase arqueológico, revelando as fundações conceptuais que sustentam a discussão atual sobre IA, valores humanos e responsabilidade. A leitura é uma jornada contínua de aprendizagem. Embora alguns exemplos e enquadramentos já soem datados — próprios de uma IA ainda mais rudimentar — a articulação entre filosofia, ciência computacional e psicologia é feita com notável equilíbrio. Mesmo os capítulos mais introdutórios, centrados na psicologia humana, revelam-se necessários para ancorar as questões técnicas em experiências humanas reais. Afinal, falar de a...

Pode o Sentir ser Formalizado

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Philippe Schlenker apresenta, no seu livro,  "What It All Means" (2022),  uma proposta ambiciosa: construir uma semântica formal aplicável não apenas à linguagem natural, mas também a gestos, música e outras formas expressivas. No centro dessa proposta está a ideia de composicionalidade: o significado de um enunciado é inteiramente derivado do significado das suas partes e das regras que as combinam. Trata-se de uma herança direta da lógica de Montague , agora estendida a (quase) tudo, que me levou quase dois anos a ler. Philippe Schlenker é uma figura central no campo da semântica formal contemporânea. Investigador no Institut Jean-Nicod (CNRS) e professor afiliado na New York University, tem vindo a expandir os limites da semântica tradicional, aplicando-a a domínios antes considerados periféricos, como a linguagem gestual, a música e até a comunicação animal. O seu trabalho destaca-se pela combinação rara de rigor lógico e abertura interdisciplinar, tentando construir pont...

SEE (1.ª temporada)

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É quase impossível não nos sentirmos seduzidos pelo mundo de SEE (2019) . A série envolve-nos num universo visualmente marcante, onde a ausência de visão molda o quotidiano, a linguagem e a guerra. E, no entanto, à medida que os episódios avançam, é essa mesma sedução que começa a ruir sob o peso de um guião preguiçoso, incoerente e preso a convenções ultrapassadas. A primeira grande fissura surge numa das cenas mais faladas da temporada: a masturbação da Rainha Sibeth enquanto reza. Se, num primeiro olhar, o gesto poderia ser lido como uma fusão transcendental entre espiritualidade e prazer — quase uma performance de autonomia corporal e mística —, rapidamente percebemos que a série não quer, afinal, explorar essa complexidade. A repetição do ritual, agora forçando uma escrava a um ato sexual, revela o subtexto: estamos perante a velha figura da vilã hipersexualizada, onde o corpo feminino serve para marcar perversidade e desvio. Uma leitura que poderia ter sido libertadora torna-se a...

Não-Humano (1948)

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Há livros que nos obrigam a confrontar o abismo da experiência humana, e há livros que apenas nos apontam esse abismo com indiferença. "Não-Humano", de Osamu Dazai, pretende ser o retrato cru da alienação moderna, mas o que encontrei foi antes o relato algo lânguido de uma existência parasitária, encenada com elegância mas vazia de verdadeiro impacto. A história gira em torno de Yozo, um jovem incapaz de se integrar na sociedade, desprovido de sentido existencial, movendo-se entre máscaras sociais, vícios e relações falhadas. Desde cedo se apresenta como alguém diferente, incompreendido, inadaptado – mas nunca se torna mais do que isso. O que poderia ser o ponto de partida para um confronto profundo com a condição humana transforma-se numa deriva repetitiva, onde o protagonista jamais se sujeita a um embate real com a vida. A escrita de Dazai é cuidada, por vezes até bela na sua secura. Mas o estilo nunca resgata a matéria: o protagonista não se constrói, não se revela, não s...

Atos Humanos (2014)

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Há livros que não se leem apenas — atravessam-nos. Atos Humanos, de Han Kang, é um desses livros. Terminei a leitura durante a semana que passou, mas ainda não me desliguei dele. Não é um romance que se devore; é um texto que se suporta, por vezes com dificuldade, como quem segura na mão um fragmento de memórias indigestas mas necessárias. Desconhecia os acontecimentos de Gwangju em 1980. Foi um choque. Sei o quão dificil tem sido a história da Coreia do Sul, desde a relação com o Japão, ao problema da divisão nunca sanada entre norte e sul, mas não tinha ideia das ditaduras que governaram o país nos anos mais recentes, e menos ainda desta violentíssimo golpe de Estado e de todo o horror que se lhe seguiu. A brutalidade da repressão, a frieza institucional, e sobretudo o apagamento deliberado da história. Ao dar corpo a essas vozes silenciadas, Han Kang transforma o romance numa forma de acusação e num veículo de memória coletiva. Se em A Vegetariana já se sentia uma escrita afiad...