Preferia Não o Fazer
Durante anos, mantive uma distância cautelosa de Herman Melville. A leitura de "Moby Dick" (1851) deixou-me com a sensação de um autor excessivamente enredado em descrições prolixas e atmosferas densas, características que me afastaram do seu universo literário. No entanto, ao deparar-me com "Bartleby, o Escrivão" (1853), fui surpreendido por uma narrativa que se desvia radicalmente daquele estilo: direta, sucinta e despojada. A estranheza foi tal que tive de confirmar duas vezes se o autor era o mesmo.
"Bartleby" apresenta-se como uma anomalia literária do século XIX, antecipando preocupações formais e temáticas que só viriam a ser plenamente exploradas no modernismo do século XX. A escrita de Melville aqui é contida, quase minimalista, contrastando com o seu estilo anterior. Esta mudança não é apenas estilística, mas reflete uma profunda transformação na abordagem do autor à narrativa e ao significado.
Neste texto, proponho uma reflexão sobre como "Bartleby" se posiciona como um precursor das inquietações modernas, tanto na forma como no conteúdo, e como a sua figura central encarna uma recusa silenciosa que ressoa até aos dias de hoje.
Apesar de a sua curta extensão poder sugerir uma narrativa simples, Bartleby impõe-se como um dos contos mais densos e desconcertantes da literatura moderna. O narrador, um advogado de Wall Street, não surge aqui como uma presença neutra ou distante, mas como uma personagem profundamente implicada no enigma que tenta relatar. Quanto mais tenta perceber Bartleby, mais se afasta de qualquer hipótese de sentido — e é precisamente nesse intervalo entre o gesto de narrar e o fracasso da explicação que se instala a potência da novela. Melville constrói o advogado como uma espécie de dispositivo de contenção: um homem sensato, pragmático, defensor da ordem e da previsibilidade, confrontado com um ser que recusa todas as categorias pelas quais o mundo se organiza. O absurdo, aqui, não vem carregado de drama, mas da repetição silenciosa e serena de uma fórmula devastadora — “ preferia não o fazer” — que lentamente desmonta a lógica do quotidiano.
O narrador não se transforma num herói, nem numa vítima — é um homem que se vai desfazendo à medida que o seu sistema de valores se revela impotente para lidar com a pura negatividade que Bartleby encarna. É por essa razão que a leitura da novela provoca uma inquietação duradoura: o texto não oferece resolução, nem nos conforta com um gesto de transcendência. A única transcendência possível é a da linguagem que colapsa diante do não.
É difícil encontrar na literatura uma frase tão curta e tão perturbadora como o “preferia não o fazer”. Não é uma recusa violenta, nem um protesto articulado — é uma suspensão serena da vontade, uma não-escolha que desarma o outro precisamente por não constituir uma confrontação. O que Bartleby faz, ao repetir esta fórmula, não é negar o mundo, mas subtrair-se lentamente à sua maquinaria. Durante a leitura, confesso, a repetição da frase começou por irritar-me. Soava-me vazia, quase caprichosa, como se fosse um jogo retórico sem consequência. Só depois de terminada a novela — e sobretudo ao repensá-la nos dias seguintes — é que a sua força começou a emergir com nitidez. Aquela irritação inicial era já sintoma do desconcerto que o texto opera: o leitor, como o narrador, procura uma lógica, um motivo, um porquê — mas encontra apenas uma presença que persiste em não se deixar nomear.
"Preferia não o fazer" não é um gesto de liberdade, nem de revolta — é um colapso da agência, uma espécie de niilismo passivo que se instala sem gritar. A sua força está precisamente no modo como interrompe o fluxo da normalidade sem propor alternativa. Bartleby não quer outra coisa. Ele apenas prefere não — e isso é, para o mundo organizado da economia e da produtividade, uma forma de implosão.
Ao contrário das grandes personagens trágicas, Bartleby não exige nada. Não clama justiça, não se queixa, não chora. O seu silêncio não é ausência, mas excesso. E é esse excesso de nada que o torna tão difícil de integrar. Melville parece antecipar aqui todo um século de inquietações filosóficas: do absurdo de Camus à esterilidade ontológica de Beckett, passando pelo mutismo kafkiano — Bartleby é o fantasma inaugural dessa linhagem.
A estranheza de "Bartleby" começa logo pela forma. A escrita de Melville, aqui, parece ter passado por uma espécie de luto estilístico. Se em "Moby Dick" o autor se deixava embriagar por descrições extensas, metáforas náuticas e digressões filosóficas, em "Bartleby" tudo isso é abruptamente silenciado. A linguagem torna-se seca, funcional, quase administrativa — como o espaço onde decorre a ação. Não há ornamento, nem musicalidade.
Esse corte formal não é gratuito — é parte integral do gesto narrativo. A escolha de uma linguagem escorreita e despojada, quase documental, alinha-se com o universo fechado e monótono do escritório de advocacia. Mas vai além disso: inscreve a novela num movimento estético que só viria a consolidar-se muitas décadas depois, quando autores como Kafka, Camus ou Beckett começassem a explorar a crise da linguagem como sintoma da crise do sentido.
Melville, em 1853, parece ter intuído esse colapso. Em vez de ornamentar o vazio, decide deixá-lo emergir na própria estrutura do texto. As frases são curtas. Os diálogos repetem-se. As ações estagnam. Tudo converge para uma espécie de "anti-dramaturgia", onde a tensão não nasce do conflito, mas da recusa do conflito. A forma acompanha a ideia — e talvez por isso "Bartleby" pareça tão desconcertante ainda hoje. Porque a escrita não tenta salvar a narrativa da inação. Pelo contrário, confia-lhe a missão de sustentar o silêncio. É nesta secura que "Bartleby" se aproxima do modernismo, não só pelo conteúdo existencial, mas pela forma que já se liberta da obrigação de entreter ou moralizar. Melville, aqui, não quer convencer ninguém — apenas deixar um vestígio de perplexidade.
É impossível ler "Bartleby" hoje sem sentir o eco da nossa própria condição. A recusa do escrivão não acontece contra um regime de opressão visível, nem perante uma autoridade violenta — mas dentro da normalidade burocrática, no interior de um quotidiano asséptico e funcional. E é precisamente isso que o torna tão inquietante. A sua resistência não se faz em nome de uma causa, mas como colapso da própria motivação. Não há revolta, apenas desativação.
Bartleby não quer mudar o mundo — apenas deixar de participar nele. E nessa abdicação silenciosa antecipa um mal-estar muito próximo do que atravessa hoje tantas vidas: a sensação de que o sistema está demasiado encaixado, demasiado indiferente, demasiado automático para que qualquer ação individual possa significar algo. O “preferia não” de Bartleby ressoa, assim, como um gesto mínimo de preservação — uma forma de não se contaminar pela lógica produtivista, mesmo que isso signifique desaparecer.
O conto torna-se, por isso, também um retrato do burnout contemporâneo, onde o sujeito já não encontra espaço para investir desejo no trabalho, mas também não consegue formalizar a sua recusa. Bartleby é, nesse sentido, uma figura do exausto, do que se recusa a continuar sem saber explicar porquê. E talvez por isso o narrador — e nós, leitores — sejamos apanhados num misto de irritação, impotência e compaixão. Porque o que ele recusa, no fundo, é também aquilo que sentimos que já não conseguimos sustentar.
Depois de terminado, "Bartleby" não se dissipa. Permanece como um ruído de fundo, um silêncio demasiado denso para ser ignorado. A sua figura — imóvel, pálida, recusando-se até a sair do escritório — transforma-se numa presença espectral na nossa memória de leitores. Não é uma personagem com quem se simpatize, nem alguém que se compreenda. É antes um ponto cego, um vazio com contornos definidos, que nos interpela sem dizer palavra.
Nota: Este texto foi desenvolvido a partir de uma interação com um modelo de linguagem avançado (IA), usado como interlocutor crítico ao longo do processo reflexivo. A estrutura e redação foram apoiadas pela IA, sob direção e revisão final do autor. Esta abordagem está em conformidade com as recentes interpretações jurídicas da autoria de obras assistidas por IA (Fritz, 2025).
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