As Memórias do Livro

Texto salvo da conta Substack que criei em julho 2023 e apaguei em dezembro 2023.
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Premissa excelente, notável investigação e até um interessante enquadramento ficcional, mas que acaba a falhar na dramatização. “As Memórias do Livro” (2008) procura ficcionar a verdadeira história de sobrevivência, ao longo de 500 anos, do manuscrito “Hagadá de Sarajevo” (1492). O manuscrito regista várias particularidades: é um texto que aborda a visão judaica do mundo, tendo sido por várias vezes salvo da destruição por guardadores judeus, muçulmanos e cristãos; é um livro de iluminuras repletas de representações humanas, imagens proibidas tanto por judeus como muçulmanos; é um livro feito de grande luxo — folhas de velino de pele de bezerro, ilustradas a folha de ouro e lápis-lazúli (ver vídeo de fac simile)— contudo não se conseguiu até hoje identificar quem o fez, desenhou ou encomendou; e por fim, escapou à expulsão dos judeus de Espanha em 1492, escaparia novamente à censura em Veneza no século XVI, depois aos algozes nazis em 1940 e por fim ao cerco de Sarajevo em 1992. Não faltam ingredientes para transformar esta história numa experiência inesquecível. Contudo, se Geraldine Brooks consegue passar a informação, dar-nos a apreciar grande parte dos factos que se conhecem sobre o que se terá passado o manuscrito, nem por isso nos consegue ligar às personagens por si criadas, nem mesmo à importância do manuscrito, salvo raras passagens. 


A dramatização falha por duas grandes razões: fraca estrutura e excesso de personagens. A autora dividiu o livro em capítulos que formam secções temporais que servem para explicar a criação de cada componente do manuscrito, dando respaldo não só aos criadores, mas a um alargado número de personagens secundárias que não têm qualquer relevância para a linha central da história. Essas secções são intercaladas com uma linha de tempo contemporânea na qual uma investigadora estuda o livro e tenta compreender de que foi feito. 

A abordagem parece colar-se a “O Nome da Rosa”, procurando seguir num tom mais atual “O Código Da Vinci”, contudo falha totalmente porque não apresenta enredo. Nada move a investigadora, não existe qualquer motivação concreta para ou porque avançar, e tal não seria um problema se depois os personagens fossem elaborados. Contudo, nem temos nenhuma razão para tentar descobrir de onde veio a Hagadá, nem temos nunca nenhuma razão para nos preocuparmos com as várias pessoas que vamos encontrando e perdendo ao longo da história. A estrutura acaba por não ir além de uma série de pequenas histórias que contam cada um dos potenciais momentos “vividos” pelo manuscrito, mas estes não têm qualquer relação entre si, além de terem contribuído para a sobrevivência do livro. 


Não chega colocar alguém à procura da origem de um artefacto, e depois ir contando histórias sobre o que aconteceu ao artefacto, se aquilo que lhe aconteceu for totalmente desgarrado. E até o pode ter sido na História real, mas cabe a um bom contador de histórias exatamente criar a trama que liga todas as pontas (pequenas histórias). É disso que se fazem grandes histórias. São os personagens o centro da relação emocional, mas é acima de tudo a consequência, o significado de tudo aquilo que acontece. Existe um significado implícito que é o facto do manuscrito ter atravessado as mãos de todas as religiões que lutaram para o salvar. Mas nem isso a autora soube explorar devidamente. Era preciso algo que unisse o todo, não se pode alegar que se procura seguir a verdade factual, até porque os personagens são completamente ficcionados. O que temos aqui é mais uma vontade de dar conta dos factos, seguindo uma veia académica, pondo de lado o trabalho criativo que deveria ter feito a diferença, já que é um livro de ficção.

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