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A mostrar mensagens de junho, 2024

Dostoiévski: uma vida íntima

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O título afastou-me, “Dostoevsky in Love” (2021), mas algumas críticas ao livro levaram-me a perceber que havia aqui algo mais. Alex Christofi não entrega um livro sobre os romances do escritor, apesar de falar deles, o foco é antes aquilo que aparece em subtítulo, “ An Intimate Life ”, que vai dos amores às obsessões, doenças, humilhações, torturas, e claro, a fé. Mas o que torna esta obra verdadeiramente incontornável é o seu processo de criação. Christofi começa por falar na ausência de uma autobiografia que Dostoiévski quis escrever mas acabou por não o fazer, pelo que Christofi procura exatamente chegar aqui àquilo que poderia ter sido essa autobiografia, ou como lhe chama o autor, "memórias reconstruídas". Para o efeito, faz algo, academicamente nada aconselhável, como ele própria afirma, mas que acaba resultando num trabalho imensamente poderoso. “Dostoevsky in Love” apresenta-se como um pedaço de tecido da vida de Dostoiévski, costurado de forma uniforme e homogéna a

Lembrança do Passado da Terra

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“A Morte Eterna” é um livro verdadeiramente inebriante. Sendo a terceira parte de uma saga, vem munido de um extenso contexto que lhe permite trabalhar amplamente as reviravoltas de enredo que agarram a nossa atenção. Por outro lado, quantas terceiras-partes conhecemos que vão verdadeiramente além da obra original? É-me muito difícil dar conta da intensidade da experiência desta leitura, porque Liu Cixin junta o melhor da arte de contar histórias com o melhor da ciência. Cixin consegue imaginar, especular, a representação de uma realidade futura de tal forma factual que quase parece estar a escrever uma ficção histórica, talvez não por acaso o título da trilogia foi estabelecido como " Lembrança do Passado da Terra ". A quantidade de conceitos elaborados e os enredos construídos em redor desses é estonteante, dando conta de um virtuosismo singular, não na forma escrita, nem na construção dos personagens, mas na capacidade de criar mundos e fazer-nos passear dentro deles atrav

Reportagem a partir de um País Perdido

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Novaya Gazeta foi um jornal independente pró-democracia criado na Rússia em 1993, reconhecido internacionalmente pelas suas reportagens de investigação com o prémio Nobel da Paz em 2021 atribuído ao fundador e chefe de redação Dmitry Muratov, com a menção: "pelos seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, que é uma condição prévia para a democracia e para uma paz duradoura". Desde 2000, este jornal perdeu 6 jornalistas, entre os quais Anna Politkovskaya , todos assassinados enquanto realizavam os seus trabalhos de investigação. Elena Kostyuchenko , descobriu a sua paixão pelo jornalismo quando tinha 14 anos, por volta de 2000, ao ler os textos de Anna Politkovskaya. Com apenas 17 anos, entrou para a equipa do jornal. Em 2014, foi quem demonstrou, através da sua investigação, que existiam tropas russas no Donbass. Com a invasão da Ucrânia em Fevereiro 2022, Kostyuchenko passou 4 semanas na linha da frente a reportar as atrocidades das tropas russas. Em setembr

Eugénia Grandet

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“Eugénie Grandet” (1833) é a par com “Le Père Goriot” (1835) e “Illusions Perdues” (1843) , uma das obras mais referenciadas da imensa produção de Balzac que forma um todo identificado como “La Comédie Humaine” com 91 livros. “Eugénie Grandet” forma um claro par com “Le Père Goriot” pelo tema que envolve o reconhecimento social baseado no dinheiro e como isso afeta ou cria disfunções no seio familiar. Não posso dizer que o tema me tinha dito muito, apesar de reconhecer a excelência do trabalho de Balzac no desenho dos comportamentos de cada personagem: o pai avarento e inflexível, a filha submissa e votada à infelicidade, e o sobrinho da alta parisiense a quem apenas interessa garantir o seu nível de boa vida. Como nos seus restantes livros, temos muita descrição na contextualização introdutória, mas realizada, arranca por uma senda de conflitos e pequenos acontecimentos que tornam a leitura imparável. No final, não fica nenhuma grande lição para os dias de hoje. O livro é um produto

Sobre as Ervas Secas

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"About Dry Grasses" (2023) é majestoso na forma como lida com a melancolia e a misantropia relacionando-as com o comunitarismo e o liberalismo tudo a partir de um trio de professores deslocados por quatro anos numa região inóspita de Anatólia (Turquia). Sinopse: "Um jovem professor espera ser transferido para Istambul após quatro anos de serviço obrigatório numa aldeia remota, mas é acusado de contacto inapropriado por duas alunas. Depois de perder a esperança, uma colega oferece-lhe novas perspectivas de vida." Ceylan cria a atmosfera por meio da composição visual, do tempo e das performances gerando o espaço ideal para o surgimento das questões, apresentando as posições por meio de diálogo mas essencialmente de ações e conflitos. Existem vários momentos simbólicos, existe quebra da quarta-parede a meio de um momento íntimo que nos parece querer alertar para a irrealidade do que está a acontecer. É, em essência, uma obra de grande amplitude humana, capaz de nos que

Catarina e a Beleza de Matar Fascistas

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Tiago Rodrigues começou a germinar a peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” (2020) em outubro de 2017, quando foi noticiado o célebre acórdão do juiz Neto Moura, do caso de violência doméstica em que o marido e o ex-amante agrediram uma mulher com uma moca de pregos, valorizando-se como atenuantes para pena suspensa o "contexto de adultério" por “constituir um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem", com direito a referências à Bíblia, ao Código Penal de 1886, e a um passado que "em que a mulher adúltera” era “alvo de lapidação até à morte". Em 2019 temos a eleição do primeiro deputado do Chega. A peça de Tiago Rodrigues estreia em setembro de 2020, em Guimarães. Em 2022, o Chega elege 12 deputados. Em 2024, elege 50. Na peça, passada num futuro próximo, 2028, dá-se conta que o partido fascista tem 117 deputados na Assembleia da República. O livro é constituído pelo texto da peça que ocupa metade das páginas, sendo as restantes escritas por Gon

O Paraíso das Damas (1883)

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“O Paraíso das Damas” é o décimo-primeiro romance da série Rougon-Macquart de Émile Zola , e um dos cinco mais reverenciados. A razão da reverência tem que ver com o trabalho de registo quase fotográfico de uma época, muito por força da abordagem naturalista porque é reconhecido Zola. É fim de século, 1880, já se fala aqui no século XX que há-de chegar, mas o relato dá conta de coisas que passados 140 anos continuam a perturbar as sociedades. Quem não se lembra da abertura dos Hipermercados no centro da Europa nos anos 1970, ou nos anos 1980 em Portugal? Quem não se lembra da chegada da Fnac nos anos 1990? E da chegada da IKEA nos anos 2000? E o que dizer atualmente da Amazon? O Paraíso das Damas é um grande armazém de tecidos e roupas, uma catedral de consumo, uma das primeiras, que viria a ser seguida em todas as outras áreas, das mercearias às ferramentas, das mobílias aos brinquedos, dos eletrodomésticos aos livros. O consumo tornou-se nos últimos 100 anos na principal atividade da