Catarina e a Beleza de Matar Fascistas

Tiago Rodrigues começou a germinar a peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” (2020) em outubro de 2017, quando foi noticiado o célebre acórdão do juiz Neto Moura, do caso de violência doméstica em que o marido e o ex-amante agrediram uma mulher com uma moca de pregos, valorizando-se como atenuantes para pena suspensa o "contexto de adultério" por “constituir um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem", com direito a referências à Bíblia, ao Código Penal de 1886, e a um passado que "em que a mulher adúltera” era “alvo de lapidação até à morte". Em 2019 temos a eleição do primeiro deputado do Chega. A peça de Tiago Rodrigues estreia em setembro de 2020, em Guimarães. Em 2022, o Chega elege 12 deputados. Em 2024, elege 50. Na peça, passada num futuro próximo, 2028, dá-se conta que o partido fascista tem 117 deputados na Assembleia da República.

O livro é constituído pelo texto da peça que ocupa metade das páginas, sendo as restantes escritas por Gonçalo Frota que traça todo o processo criativo, das ideias aos ensaios, pensamentos do encenador e dos atores, oferecendo referências do que serviu de inspiração à criação da experiência final, de livros a séries de televisão, passando por quadros e autores conhecidos, chegando à atualidade e a alguns dos principais encenadores do fascismo mundial — Trump, Bolsonaro ou Steve Bannon — para acabar na figura central de Catarina Eufémia

Tendo em conta o brilhante design dramático da peça criada por Tiago Rodrigues, considero que o livro deveria conter ainda uma terceira parte, com relatos da experiência dos espectadores, potencialmente entrevistas, análise e discussão. Como tal, deixo aqui um link para o relato de uma espectadora, a Sónia Pereira do blog Quimeras e Utopias, para lerem depois de terminarem a leitura da peça. Para quem, como eu, não assistiu à peça ao vivo, é fundamental aceder aos relatos dessas experiências, sem o que dificilmente se chega à essência da peça.

Sobre a minha leitura. Confesso ter partido com muitas cautelas para a mesma, já que desde que conheci o título da peça, em 2020, não quis de todo aproximar-me da mesma, causando-me repugna. Acabei comprando o livro, porque depois de ler algumas resenhas internacionais, a peça ganhou vários prémios em França e Itália, compreendi que existia um dispositivo dramático particular no seio da peça que era despoletado pelo título. Como não é revelado, ou não se compreende sem ler a peça, a curiosidade obrigou-me a entrar na mesma pelo texto. Se o texto é excelente, o dispositivo dramático não funciona como numa sala de teatro, porque lhe falta o corpo humano que assume a performance das palavras, elevando o texto para outros patamares experienciais. Lê-las num livro, soam abstractas. Contudo, depois de compreendermos o design da encenação, que é bem descrito por Gonçalo Frota na segunda metade do livro, nomeadamente a componente final, o trabalho do ator e o controlo de luzes, relemos todo o discurso final com um olhar distinto.

Sara Leitão, imagem da peça do Teatro Nacional D. Maria II

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” enquanto livro é uma memória escrita que serve a quem teve oportunidade de ver a peça ao vivo. Espero que sirva para manter a peça em encenação por mais alguns anos, pois muitos de nós que conhecemos a mesma apenas agora pelo texto ficamos desejosos de aceder à encenação em palco, à experiência total no meio de uma plateia cheia.

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